sexta-feira, 28 de março de 2008

O PASSAGEIRO FANTASMA

Talvez quem não seja acostumado a viagens noturnas não vá entender sobre minha cisma de andar de ônibus à noite. Uma esfera de mistério envolve o ato de cruzar quilômetros de asfalto envolto por sombras e segredos que somente se revelam nos momentos mais indesejados. Mas nada se compara com o que enfrentei naquela noite, uma sexta-feira. Não era treze, mas podia. Por tudo que aconteceu. Não há mais ninguém que possa confirmar, mas isso é um detalhe que serve para detalhar o quão assustadora aconteceu àquela noite.

Dirigia-me a São Paulo, e por ter medo de avião, preferia sempre andar de ônibus, embora meus receios com a parte noturna da viagem. Mas até aquele momento não havia motivos para maiores medos. O som do motor fazia um barulho abafado, e o carro deslizava entre as curvas da Regis Bittencourt. A noite tinha-nos abraçado fazia umas três horas, e pela janela apenas o breu e a sombras das árvores e das montanhas se insinuavam.

Tinham-me por sovina, talvez se justificasse, afinal jamais viajavam em linhas diretas, sofrendo um pouco mais com os “pinga-pinga”, porém pagando menos. Também me agradava conhecer um número maior de lugares. Estava sentado na ultima fileira. Tinha preferência pelo fundo, embora vez por outra visitantes do banheiro pudessem causar infortúnios. Estava esfriando, e me virava dum lado pro outro, tentando me acomodar. Esperava chegar a São Paulo pelo início da manhã.

Inquieto, busquei por um livro. Tentei ler, mas era impossível, pois a luminosidade era pouca, e minha visão não era mais a mesma. Restou-me olhar pela janela, já que o sono não vinha. O motorista parecia com pressa e as curvas eram engolidas pelo ônibus. Parecia que nenhum outro veículo se aventurava na rodovia, e talvez isso até fosse possível, pois poucos são os corajosos de enfrentar uma estrada perigosa naquele horário. Os riscos são muitos, mas aquele motorista não possuía outra alternativa, apenas seguia seu caminho como lhe ordenado.

A condução não estava cheia. O ultimo a embarcar tinha sido uma família, numa cidadezinha paranaense. A mãe, e três filhos. Faltava-lhes o pai. Talvez os esperasse em seu destino. Pobre homem deve ter ficado esperando em vão. Sim, pois eles jamais chegaram ao seu destino. Apenas eu. Pergunto-me a razão para apenas eu. Mas enfim, quem sabe tenha sido o mais atento ao grande perigo. Sempre tive manias estranhas, e para minha sorte uma delas era encarnar personagens do cinema e da literatura. Um ser estranho você pode pensar, mas foi graças ao meu instinto e meus personagens que escapei da morte, e do inferno.

Os espiões sempre me ensinaram uma lição básica, que lhes garanto que um dia pode ser útil. Devemos estar atentos, e principalmente reconhecer o ambiente que nos encontramos. Sempre fiz isso, e confesso que em várias oportunidades isto me foi útil. No momento que você faz tal reconhecimento, também consegue calcular possíveis riscos. Estimo ter escapado de no mínimo de dois assaltos usando esta técnica. Mas naquela noite, mais do que um assalto, creio que o método me ajudou a salvar minha vida.



Acho que entre todos dentro do carro eu era o único a estar acordado, além do motorista e do cobrador é claro. A maioria não percebeu a freada brusca do condutor. Apenas uma velhinha sentada umas cinco filas a frente fez menção de acordar. Alguém esperava num ponto. Um passageiro. “Que diabos quer alguém esperando ônibus á esta hora?” perguntei a mim mesmo. Temi por roubo, coisa infelizmente normal nas estradas. Mas aproveitei para abrir a janela rapidamente enquanto o carro parava. Não havia nenhum sinal de vida por perto a nãos ser de animais, e inseto, e do novo passageiro.

Fechei a janela. E voltei a me concentrar novo companheiro que entraria logo no corredor. Estranhei a demora. Olhei para a cabine e uma figura esguia fazia gesto e conversava com o motorista e seu auxiliar. Aquilo durou cerca de um minuto aproximadamente. Minha visão não era nítida, pois estava escuro e as luzes estavam apagadas. Não podia definir nada mais que a altura e a óbvia magreza do cidadão. Quando ele entrou no corredor senti um vento soprar, o que tirou minha atenção, e fez-me olhar para a janela. Pensei tê-la esquecido aberta, mas ela continuava fechada.

O estranho sentou-se logo na primeira fila. Podia avistar sua cabeça, e parte do pescoço, que ficavam fora do encosto do banco. Estranhamente o ar ficou mais gelado, e não tinha nenhum casaco comigo. A primeira sensação me causou arrepios, e percebi que os pêlos de meus braços estavam eriçados, e suava como um cão pressentindo o perigo. Não tirei os olhos do novo passageiro, que até ali nada de anormal havia feito, a não ser é claro por sua própria fisionomia.

Uns vinte minutos após a entrada dele no ônibus, mantinha a vigilância. Notei que os passageiros da primeira fileira começaram a conversar com ele. Na verdade, não parecia uma conversa, e sim sussurros. No banco ao lado do novo passageiro ia uma mulher. Lembro-me de seu rosto, pois ela havia entrado no carro antes de mim, era muito bonita. Tinha olhos vivos e flamejantes. Pouco depois da conversa, seu braço esquerdo caiu sobre a poltrona como se estivesse mais pesado que seu corpo. Ela parecia desfalecida. Vi o estranho virar o rosto para o outro lado, e voltar a sussurrar. Um frio na espinha percorreu meu corpo.

As coisas começaram a piorar quando percebi o ônibus diminuir a velocidade, e de repente começar a sacolejar. Aquele não era mais o caminho. Busquei olhar pelo vidro, e não avistava nada mais que sombras. O ônibus estava envolto pelo nada absoluto, e trafegava por estradas não conhecidas. Não pensava noutra a não ser assalto. “Estão nos levando para um lugar ao ermo, e nos roubar” cogitava. Não sabia qual atitude tomar, até mesmo porque ignorava se o estranho estava armado ou não.

Refletia quando percebi que o passageiro mais recente visitava poltrona por poltrona, e a cada visita os corpos desmaiavam. Faltava pouco para chegar até mim, e á medida que avançava percebia seus traços finos e longilíneos. Sua pele clara, alva. Branca qual farinha. Seus olhos sendo revelados pelas sombras mostravam-se profundos e ardentes. Jamais vou esquecer aqueles olhos. Causava-me muito medo, um medo único, um pavor nunca antes sentido. Estranhava não existir contato, tampouco troca entre ele e os demais passageiros que sequer reagiam. Apenas adormeciam.



O estranho não falava uma única palavra, apenas sussurrava. O sopro de sua voz gelava ainda mais o ambiente, e antevendo um confronto levantei-me, e puxei a campainha. Preparei-me para descer, e segui em direção ao corredor. O estranho estava no meio da condução e quando percebeu meu ímpeto sobressaltou-se pela primeira vez. Fechou a passagem, e proferiu “ninguém desce desse ônibus”. Sua voz se mostrou grossa e profunda, e de sua boca um hálito fétido tomou conta do ambiente fechado. A melhor coisa que pensei foi fugir ao fundo da condução, ainda a tempo de ver alguns olhos vidrados e passivos ao que acontecia.

Joguei meu corpo contra a janela, sem me preocupar com o que enfrentaria. Os vidros se estilhaçaram, e me projetei para o exterior da condução. Quando meu corpo tocou o solo senti os ossos quebrar, e uma dor aguda. Rolei alguns metros de barranco. As lanternas traseiras do ônibus eram a única luz, que ao pouco foram sumindo em meio à madrugada. Respirei profundamente, e quando o sol raiou e vi-me envolto a árvores e montanhas. Adormeci.

Quando acordei, estava numa velha cabana, e um senhor de idade avançada tratava meus ferimentos. Contei-lhe a história. “Eu já imaginava isto. Não tenho dúvidas, você escapou do passageiro fantasma. E até onde eu sei foi o único. Ele surge na sexta-feira sem lua, embarca em ônibus e o leva para o inferno. É trato dele com o diabo. Acho melhor rezarmos pelas almas que ele carregou”. Quando o velho terminou suas palavras senti certo alívio, e ao mesmo tempo culpa por não ter salvado ninguém. Porém não resolvi pensar muito, mesmo ainda machucado preferi segui o caminho contrário daquela estrada, pois seu destino não me atraía, e muito menos aquele velho me inspirava confiança, afinal ele estava na metade do caminho.

quarta-feira, 19 de março de 2008

MESA PRA TRÊS

O copo com uísque já na terceira rodada estava quase vazio. A fumaça de um cigarro mentolado escondia um dos rostos que confabulavam na mesa sete do bistrô. Quase todos os clientes haviam partido, e apenas eles permaneciam, bebendo, conversando, traçando rumos importantes para Cafundópolis. A mesa ficava ao fundo um pouco longe das vidraças que davam para a calçada. Afinal, não era propício que o presidente da Câmara cujo nome que o elegera foi Sapo, e sua principal propaganda um fusca com o desenho do anfíbio, se reunia e bebia amigavelmente com o valoroso oposicionista Valdir do Buteco. A eles se juntava o líder do partido de Sapo, nobre vereador Carlão do Posto.
– Como tu está inspirado este ano Valdir. Tenho pena da prefeita. Provocava Sapo, com a voz embargada pelo álcool. – Ao contrário meu colega, e a chefe do seu governo que precisa ter pena de nós. Devolveu ele depois de retirar seu cigarro da boca, e tragar profundamente, e depois expelir uma fumaça de cheiro medonho no ar. – Se os fiscais te pegam fumando aqui... Continuou brincando Sapo, pois o lugar onde estavam era de sua propriedade, e de modo algum seguia as leis. Alias a principal fonte financiadora de suas campanhas estavam nas duas mesas de pife que aconteciam terças e quintas numa saleta nos fundos.
– Mas penso que não estamos aqui para falar da prefeita, ou dos fiscais dela.
– Assim começo a gostar dos andamentos da conversa, e vejo Valdir, que não faz aqui como no plenário, com discursos evasivos. É disto que o povo precisa meu caro: objetividade.
– Sempre falastrão Sapo. Depois sou eu quem fica falando em rodeios.
– Não seja tão apressado, colega. Beba um pouco mais. Senão este copo terá mais água que álcool.
– Não tenho muito tempo, amanhã vou a capital atrás de recursos para a vila, e partirei ao amanhecer.
– Nisto não posso crer. Que político é você que pensas em dormir cedo, num momento tão decisivo, pois não esqueça que amanhã a noite tem sessão, e é na madrugada que as coisas se definem neste meio, meu amigo.
– Eu sabia. Você deve estar precisando de apoio para mais alguma loucura de seu governo. Mas saiba que neste ano, embora minoria, nossa bancada pretende fazer barulho. Não deixaremos que ganhem novamente.
– Sempre tomando sopa quente. Se acalme homem. Alias chamei-o para este encontro, não por causa do executivo, e sim pelo bem de nós vereadores, pois tenho que concordar que a prefeitura hoje não nos representa por inteiro, tampouco nosso povo.

– Garçom, mais uma cerveja. Estas foram ás primeiras palavras de Carlão depois de começado a conversa com mais ênfase entre seus dois companheiros. Estava ali para representar o partido, e para manter sua imagem de fiel escudeiro de Sapo. Entre os três tinha menos idade, e sua função naquela noite era testemunhar um provável acordo, e se necessário ajudar a convencer seu colega da oposição.
– Então para de dar meais voltas com as palavras e diga logo porque estamos aqui. Disse Valdir.
Tragando o ultimo gole do uísque e devorando o ultimo cubo de queijo do tira-gosto, Sapo começou a falar de suas intenções.
A – Sabe bem o colega que amanhã a prefeita envia a nossa casa legislativa um projeto para cobrar a iluminação pública.
– Sim, e acho que se fosse governo como vocês, estaria cuspindo fogo pelas ventas. Tenho informações que os colegas pouco sabem sobre o projeto.
– Este também é um problema...
– Problema qual não tenho nada a ver... E na verdade em nome de nossos cidadãos este projeto já esta vetado antes mesmo de sua apresentação.
– Não se precipite colega. Também não blefe, pois sabe que a maioria aprovará. Pois somos a maioria.
– Nunca se sabe, não é?
– Não caio em suas artimanhas. Você é ardiloso, mas ainda controlo aquela casa.
– Então, se já esta tudo aprovado não entendo porque me chamou. Não temos tempo para conversa fiada.
– Ora. Não seja precipitado. Sabe que existem muitos fatores que envolvem este projeto.
– Não entendo aonde o colega quer chegar.
– Permita-me explicar melhor. O amigo sabe que a oposição irá gritar, ir aos jornais, ao rádio, fazer um barulho enorme. Para talvez “roubar-nos” alguns votos. Não conseguira nada além de barulho. Por outro lado se o projeto do executivo, da maneira que esta, taxando a energia pública sobre o percentual que já gastamos com a luz. Acredito que este projeto também não será positivo para nossa imagem.
– Agora fiquei mais perdido que cego em tiroteio. Ou entendi mal, ou o senhor não quer que a oposição seja contra, mas também não apóia a idéia de sua “querida” prefeita.
– Não estamos aqui para ironias Valdir. O assunto é sério.
– Não estou com ironias meu caro, mas que continuo sem entender. Você é contra, mas fala na aprovação do projeto.
– O colega sabe que o Tribunal de Contas não permite renuncia de receitas. A taxa de iluminação pública tem de ser criada, me refiro apenas sobre sua maneira, pois sim, não fomos escutados, e isto é um desrespeito com toda a casa legislativa. Mas isto também não vem ao caso, pois quando o chamei, o fiz por causa de uma luz que se apresenta ao fim deste túnel nebuloso.
– Então continue.
– Pois bem. Antes de falar-lhe de uma hipotética proposta, da qual espero que o senhor não utilize conta nós algum dia, lhe pergunto, o projeto do jeito que está é bom para o povo? E nós vereadores, e estamos sempre no subúrbio das decisões, o que ganhamos com isto? Não, o projeto não é bom para nosso povo, imagine nossos queridos empresários pagando três por cento sobre suas faturas da conta de energia. É um custo muito alto, e sabemos bem, já que aqui, cada um de nós tem seu comércio. Além disso, o custo político é alto, e mesmo vocês da posição pouco ganharão com seus gritos.
– Disso concordo com tudo, mas não compreendo ainda.
– Vou ser mais direto, mas que morra aqui entre nós. A bancada da maioria tem proposta. Dentro do partido conversamos alternativas, e sabemos das reações negativas, porém também não podemos travar o governo. Assim criamos uma alternativa. A nossa casa legislativa tem a soberania do método de contribuição desta taxa, e convenhamos nenhum de nós que uma taxa alta, e sei bem Valdir do consumo de energia que utilizas. Pense pagar três por cento sobre isso. Se aprovarmos isso quero ver algum empresário financiar nossas campanhas.
– Concordo. Mas...
– Não me venha com mais indagações, e deixe-me terminar. Tenho aqui a matéria com alterações, e a nossa proposta é que votemos por uma taxa definida em valores, e assim nossas empresas, e as de nossos amigos nãos serão castigadas com mais impostos. O senhor sabe que isto beneficiará a todos.
– Por esse lado. Mas não sei se consigo convencer os outros cologas oposicionistas do mesmo.
– Conseguirá meu amigo.
– Não tenha certeza, pois o José é arredio, e é do sindicato, e não ta nem aí pro empresários.
– Calma, não é a toa que nosso colega Carlão está aqui. Embora calado e nos ouvindo nosso amigo que lembre-se o senhor, que nosso amigo aqui também é o presidente da Associação Comercial e traz-nos uma proposta ainda melhor.
Chamado ao assunto Carlão não se furta em entrar em ação na tentativa de selar o acordo.
– Pois bem. O amigo Valdir sabe do temor da Associação e seus membros com a proposta do executivo. Seríamos onerados em demasia, e por isso nos precavemos em instituir um pequeno fundo – ele escreve a quantia contida no tal fundo num pedaço de guardanapo capaz de fazer Valdir engolir a seco pela surpresa do valor apresentado – que nos dispusemos em partilhar dividindo-a igualmente entre os colegas.
Tragando um gole do uísque que recompunha novamente o copo, Valdir levantou-se da mesa olhou aos dois, entendendo-lhes a mão. – Os colegas me convenceram. Até amanhã. E não se preocupem com o José.