domingo, 25 de maio de 2008

Metamorfose - Kafka



Obra singular de Kafka, disponível para donwload em formato PDF. Clique na imagem para fazer o donwload. (1,15 MB)

sábado, 24 de maio de 2008

Aquele Estranho Amigo de Meu Pai



Asdrubal Inocêncio. Por si só, o nome daquele homem que trabalhava com meu pai já era capaz de criar certas cismas. Mas para piorar, sua aparência também não ajudava, e creio em minha ingenuidade que talvez aquele homem jamais tenha chegado perto de uma fêmea. Era um homem rotundo, braços, e barriga larga, e um rosto pipocado, coisas do tempo de catapora mal curada. Aparecia vez por outra lá em casa, quase sempre depois de dar carona ao meu pai, já que sua casa ficava cinco quadras após a nossa. Devia ter uns quarenta anos, e o mais estranho, jamais se casara, embora não fosse difícil imaginar os motivos para sua solteirice. Tinha uma voz embargada e rouca, e fosse qual fosse o dia vestia-se em tons escuros, principalmente roupas negras. Toda vez que ele aparecia por casa, eu sumia, pois o temia como o diabo da cruz.

Era um sábado, quando ele aportou, dando uma passada para cumprimentar meu pai por um bom negócio realizado. Fiquei a espreita, como um detetive em campana. Por algum motivo ele me passava certo mistério, e resolvera logo dar um jeito naquela situação, já que ele ia a nossa casa, mas jamais havíamos ido a casa dele, ou por falta de tempo, ou pela dificuldade em saber exatamente onde ele morava, pois mesmo nas proximidades ele jamais dissera com precisão seu endereço. Sabíamos apenas que ele morava com sua avó, uma velhinha de oitenta anos, essa era mais uma de suas esquisitices, pois jamais conheci um marmanjo que morasse com a avó.

Eu tinha um plano, seguiria ele com minha bicicleta, e finalmente poderia saber onde ele morava. Isto poderia saciar meus medos quanto a ele, pois quem sabe tudo não passasse da imaginação fértil de um adolescente desconfiado com o estranho amigo de seu pai. Por via das dúvidas mantive meu plano, e quando ele deu partida em seu automóvel, esperei por uma distancia segura, e comecei pedalar em perseguição.

As ruas do bairro são bem calçadas e até permitem uma velocidade maior, mas ele não acelerava muito, e acho que o carro não avançava mais que uns vinte por hora. Ao longe via que ele conduzia o volante olhando para os lados como se vigiasse todas as moradias dali. Não cumprimentava ninguém, era como se fosse um estranho, seguindo lentamente. Demorou uns vinte minutos para que a rua começar a encontrar seu fim, e com ela a ultima casa, um sobrado de janelas largas, cercada por um muro de tijolos se reboco. Parecia um lugar abandonado, onde reinavam os capins altos, e arbustos de todos os tipos. Era uma casa grande, e tinha aos fundos um grande quintal, que descobri fazendo a volta em meio a um matagal que se erguia num terreno baldio. Fiz isso para ver o que ele carregava sobre os ombros.

Ele tirara o saco do bagageiro do seu carro. Parecia pesado, pois suas pernas arquearam quando ele forcejou elevando-o às costas. Achei estranho, e sem nenhum senso de perigo, pus-me em persegui-lo. Iria até o fim, para desmascarar aquele homem estranho. Me embrenhei no matagal, arranhando pernas e braços, mas consegui alcançar um local seguro, sobre um pé de amoreira que tive de escalar. Acobertado pelas folhas verdes da planta, tinha a visão completa do quintal. Era o quintal mais estranho que já tinha visto. Era grande, porém nenhuma planta existia no lugar, e sinceramente, não há sentido em quintal sem flores e sem árvores, apenas um louco poderia conservar tal lugar, forrado por um gramado verde e bem aparado, e em um dos seus extremos uma cova parecia aberta.

Confesso com toda a sinceridade que naquele momento minha valentia havia fugido de mim, e minhas pernas tremiam, e por Deus, me perguntava os motivos para cometer tal idiotice. Pensei em fugir e não ver mais nada, e talvez até tivesse sido melhor, mas se o fizesse ele poderia descobrir minha empreitada, e isso sim seria perigoso demais. Vi ele se aproximar da tal cova, e com violência jogar ao chão o saco. Meu sangue gelou, e se tivesse alguém ao meu lado talvez pudesse confirmar minha palidez, pois fui travado pelo medo e pelo pavor. Um braço caíra pra fora, um braço de gente. De gente morta. Tremia, suava, e chorava escondido na amoreira. Pensava donde teria saído aquele corpo, quem seria aquela mulher, sim era uma mulher, pois quando ele ajeitava o corpo inerte um rosto se revelou, era um belo rosto por sinal, que logo fora jogado dentro da cova.

Ele enterrou pá por pá, e depois cobriu o retângulo de terra com fardos de grama. Ajoelhou-se, e creio que rezara. Todo o ritual deve ter levado cerca de uma hora, tempo que fiquei na amoreira e de lá saí apenas quando sua figura sumiu, entrando em casa pela porta dos fundos. Sai em disparada, até minha bicicleta, na qual montei, e saí em velocidade. Se, contei esta história para alguém? Bom era minha grande dúvida, qual seria minha atitude? Poderia falar a meu pai, ligar pra polícia, poderia fazer qualquer uma destas hipóteses, mas não fiz, achei melhor não arriscar, vá que ele descobrisse quem fora o dedo-duro. Achei melhor não mexer com alguém que enterra corpos em seu quintal, e ainda reza por suas almas.

Por Douglas Eralldo

quinta-feira, 22 de maio de 2008



Maicom vivia um terror particular. Não se lembrava de nada, nem ao mesmo de seu nome, e de quem era. Também não fazia a mínima idéia de como foi parar naquele lugar tomado pelas sombras. As copas das árvores altas como prédios não permitiam a entrada da luz, que o tocava em pequenos filetes, e exaltando a névoa que o cobria. Sentia frio, mas corria nu, completamente nu em meio ao bosque que o aprisionava. Sua mente não lhe permitia lembranças, ou a busca do passado, deixando-o num presente aterrorizador, embrenhando o home numa fuga constante.

Estava cansado. A transpiração de seu corpo, e o cansaço que transformava a carne de suas pernas em concreto eram sinais inequívocos que estava preste a sucumbir ao seu perseguidor. Mas quem, ou o quê o perseguia? Ele estava sozinho, se via sozinho, mas mesmo assim corria alucinantemente em busca de salvação. Sentia a morte transpirar em seu cangote, mas não sabia exatamente o quê lhe jogava em fuga desesperada pela sobrevivência. Acuado girava seus olhos em todas as direções, e a cada cinco metros fazia um ângulo de trezentos e sessenta graus buscando observar se a coisa que o atacava estava próxima. Sua respiração ofegava, ele pensava em descansar, mas uma força o mantinha no caminho.

Rodeado pelo silêncio e pela mata ele podia se lembrar apenas do período que recobrara a consciência. Ele já corria feito louco. Isto fora há no mínimo quatro horas. Quando seu cérebro impulsionado pela adrenalina repousava pelo mínimo instante que fora, ele orava, fazia preces para que o fim da floresta chegasse logo, e que encontrasse ajuda. “Meu Deus, onde estou. Juro por tudo que há de mais sagrado que nunca imaginei haver ainda bosque tão vasto como este”, pensava lentamente juntando um ou duas palavras.
Suas pernas emolduravam seu sofrimento, deixando escorrer o sangue, devido aos cortes e arranhões provocados pelos galhos, e espinhos. Tropeçou, escorregando em alto declive, embolando-se com terra e pedras, esfolando-se ainda mais. Além do medo, a dor não era mais suportável, e ele cogitava parar, e ceder à dormência de suas pernas, e parar ali mesmo deixando-se ser engolido fosse o que fosse seu inimigo. O bafo pútrido carregado pelo vento cada vez mais próximo, e ele prestes a tomar uma decisão. Deixar-se morrer, o seguir fugindo ao ermo.

A queda durou alguns minutos, estatelando o homem em areias macias. Ele podia ouvir o som das ondas raivosas de um mar revolto. Decidiu pela vida, e iluminado por uma ostentosa lua continuou sua fuga, deixando rastros sinuosos na areia...

Por Douglas Eralldo

sábado, 17 de maio de 2008

KM 100: ONDE A MORTE ENCONTRA VOCÊ


– Não foi fácil chegar até aqui. Convencer os que não se convenciam, e convencer a mim mesmo que há algo de estranho nesta estrada. Foram quarenta e nove mortes nos últimos sete anos, e apenas agora estamos fazendo algo para frear o ímpeto destas curvas assassinas. As palavras saiam da boca de Felisberto Cunha. De profissão pedreiro, mas por amor, bombeiro voluntário, grupo que ajudara a criar anos antes. Seu sofrimento falava da Rodovia 470 que cortava ao meio a pequena cidade de Vale Grande.
O lugar era bucólico, com personagens muito próprios, onde a valentia e a perseverança de Felisberto sobressaiam. Primeiro teve de vencer a morte de sua esposa e suas duas filhas. A noite ainda ouvia os gritos de Rita, a mais jovem agonizando entre ferragens. Nunca mais dormiu uma noite de sono completo, e por isso seus olhos eram inchados e vermelhos. Voltavam da casa de parentes quando o carro guiado por ele deslizou no asfalto molhado, e sem condição de frear chocou-se violentamente contra o barranco. Apenas ele sobreviveu, e mesmo assim teve de superar dois meses de coma profundo. Muitas vezes praguejou os céus por apenas ele continuar vivo. A dor pela ausência de sua família o atormentava, e por mais de ano seu único consolo era o copo de cachaça.
Felisberto não trabalhava. Sua casa se habitou de ares fúnebres, e poucos tinha coragem de chegar a ela. Apenas o carteiro, que não passava da cerca com a caixa de correspondência, e o Padre iam ao seu encontro. O padre, inclusive, mostrava-se tão perseverante quanto Felisberto, pois várias foram as vezes que saiu corrido pelo amargurado homem. “Que Deus é este, que tira a vida de crianças, de esposas dedicadas? Que Deus é este?” dizia ele afrontando o pároco. Mas algum tempo depois ele recuou, e voltou a ser o homem cordial, e foi aí que começou a criar o grupo de Bombeiros Voluntários. O padre fizera um belo trabalho.
Então sempre quando algo ocorria de errado no lugarejo com pouco mais de dez mil pessoas, e nenhum prédio com mais de três andares, lá estava Felisberto sobre o carro Mercedes ganhou de uma cidade da Europa. E sempre havia trabalho, ora fogo, ora um simples animal em perigo, mas era soar a sirene em seu turno que Felisberto corria para atender com seus companheiros. Porém a alegria da maioria das vezes era abruptamente ceifada pelas tristezas que lhe chegavam. Todas vindas do quilômetro cem das 470, pois os acidentes continuavam a existir, e a levar vida em sua reta de trezentos metros, e em suas cinco curvas existentes nos setecentos metros restantes. Naquele lugar ninguém sobrevivia. Aliás, o único que restara para contar história tinha sido o próprio Felisberto. Fora ele, apenas corpos jaziam de ferros, borracha e vidro.



A fama de estrada da morte correu distâncias, e muita gente resolveu fazer turismo ao palco do horror que afligia os moradores e os viajantes. O trecho do quilômetro cem passou a ser um dos lugares mais visitados da cidade, embora seu visual não fosse, digamos assim, algo bonito para ser visto. Para quem vem do sul, a primeira coisa a ser vista é a placa vistosa, com a escrita estridente: KM 100. Esta substituiu a placa menor que se escondia sob os arbustos. A intenção na verdade era demarcar o local aos visitantes e curiosos, se bem que isto sequer era necessário, pois os estilhaços de pára-brisas, ferros contorcidos, e até rodas amassadas às margens deixavam claro que o lugar se iniciava ali. Não há casas em nenhuma parte do trecho. A reta é a primeira a se insinuar abrindo caminho para a morte, e logo apo com o “s” se inicia o trecho sinuoso. Do lado direito uma valeta leva a um barranco, e mais adiante o campo dá lugar a frondosos pinheiros á beira da estrada. No lado esquerdo, mais barrancos, e um declive acentuado levando a um buraco, onde há água num pequeno córrego ao se iniciar as curvas. O asfalto negro como as sombras por vezes é imaculado por buracos, e ondulações. Muitos protestaram por causa das condições da estrada, mas nenhuma autoridade buscou resolve-los. No entanto, talvez isto também não fosse suficiente, pelo menos é o que começara imaginar Felisberto.
A rodovia, e “o trecho da morte” começaram a se transformar numa obsessão do bombeiro voluntário, que via nas mortes muito mais que acidentes de trânsito. E aí começou sua peregrinação por convencer as demais instâncias da cidade que o Km 100 conduzia as mortes de forma planejada e metódica. No início ninguém deu ouvidos à suas teorias, nem mesmo o padre, que tentava achacar a obsessão de sua ovelha mais arredia. Mas Felisberto se debruçou sobre jornais, e outros documentos, que o auxiliaram a formatar um documento cheio de detalhes que era capaz de assustar aos que o viam. Assim ele começou a conquistar o apoio da prefeitura, dos demais bombeiros, e até da polícia local. O grande objetivo dele era salvar novas vidas, pois sabia que a estrada ira tragar mais almas, e sabia também o lugar, e a provável hora para acontecer.
– Demorei seis meses para elaborar este estudo, o qual hoje conta com a confiança de muitos aqui, presentes. Aos que ainda não tem o conhecimento, lhes peço discrição, pois o que será falado pode fugir da alçada da compreensão humana, porém mostram os números, que talvez haja mais que simples coincidências nas vidas que são levadas pela estrada maldita. Felisberto discursava para uma platéia com umas cinqüenta pessoas. Todas elas estariam envolvidas no planejamento de trabalho para aquela noite.
– Sei que muitos de vocês acreditam que não seja necessária nossa presença. Ou que eu tenha ficado louco, e que muitos também enlouqueceram por concordarem em colocarmos toda a estrutura da cidade num lugar onde não aconteceu nada. Mas tenham certeza, isto acontecerá, pois sempre aconteceu, e nós apenas tivemos tempo para resgatar corpos, jamais vidas. Nos últimos sete anos, dezenas de almas se perderam nesta estrada, quase cem. É nós não podemos fazer nada. Famílias se desfizeram por inteiro, jovens, velhos, homens, mulheres... Mas hoje podemos fazer algo para tentar evitar, e não quero que pensem que sou algum vidente ou coisa do gênero. São os números que afirmam isto, são eles que dizem que a morte chega a cada sete semanas, e primeiramente na primeira sexta-feira de noite sem lua, quando as sombras cobrem a terra, e a estrada naquele trecho. Caso alguém ainda duvide, todo o estudo está aqui, e é por ele que nos basearemos e passaremos a noite, e caso aquelas malditas curvas teimem em querer levar alguém, estaremos lá para salvar estas vidas. Todo o discurso de Felisberto foi baseado nos números e na certeza que a estrada tentaria levar mais alguém naquela noite.
Há sete semanas Severo Malheiros capo desgovernara sua camionete levando-a ao fundo do lago, morrendo afogado. Todas as vidas haviam sido tragadas entre vinte e uma e as vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos. Jamais depois da meia-noite. Jamais. Então bombeiros, uma ambulância, e policias partiram para o trecho maldito da estrada. Estava muito escuro, e mesmo que houvesse lua não seria vista, já que nuvens negras traziam trevas, e uma chuva aguda e fria, obrigando a todos usar capas e guarda-chuvas. Apenas os faróis dos carros da caravana cortavam os pingos d’água que caiam, enquanto olhares nervosos buscavam qualquer indício de perigo.
Ao chegarem, todos se puseram nos pontos pré-determinados, sempre buscando cobrir a maior área possível do trecho. Sirenes ligadas, cones redutores de velocidade, entre outros apetrechos foram usados para chamar a atenção dos motoristas que por ventura fossem trafegar na estrada. O carro com Felisberto ficou estacionado num plano pequeno, no início da curva. Com a chuva foram apenas três bombeiros, Felisberto e outros dois.
– Você acredita mesmo nisso? Perguntou Raul.
– Se não acreditasse, não estaria aqui. Respondeu agressivo.
– Não duvido de suas teorias, meu amigo, mas é que especialmente hoje, não acredito que alguém invente de pegar a estrada.
– É, mas há três anos chovia muito mais, e um senhor idoso bateu o carro quando ia a capital visitar seu filho enfermo. E foi também num maldito dia de chuva que esta estrada levou minha família.
– Ah! Lembro-me. Foi um dos primeiros acidentes, não foi? Sim, exatamente foi logo depois da inauguração da estrada nova ligando até Vale Novo. Mas isto faz quantos anos?
– Exatamente sete anos. Sete malditos anos que esta estrada carrega pessoas, e se cobre com o sangue e com a morte.
– Credo! Você até me assusta. Vou tirar uma água do joelho e volto já. Disse Raul.
– Também vou. Disse Ernesto. Provavelmente falariam das loucuras do colega, no lado de fora.

Felisberto ficou absorto em seus devaneios e lembranças cruéis. Enquanto os amigos se afastavam, até uma árvore para urinar ele ligou o velho radio que doara ao caminhão do corpo de bombeiros. O som melancólico de “stairway” do Led Zeppelin soava chiado, mas ele não trocou de estação, perdendo seu olhar em direção ao início da reta. A imagem de Ana sua amada esposa formava-se no horizonte. Viu seu sorriso doce de sempre. As meninas cirandavam a sua volta esvoaçando os vestidos de panos leves. Pareciam felizes, enquanto lágrimas vertiam de olhos clementes. Então ao longe, mesmo com os pingos mais grossos estalando na lata do caminhão, ele percebeu que uma luz vinha pela estrada, cada vez mais forte. Tinha um ronco forte, que rompia a noite, e em velocidade avançava pela reta. Sem acreditar no que via, Felisberto levou as mãos aos olhos, limpando-os para ver se não era miragem o que via. Não era. O caminhão seguia em velocidade em sua direção, e o mais incrível era conduzido por quatro enormes cavalos, dois de cada lado. Sobre ele nada mais que sombras cobertas por um manto negro, cavalgavam como se conduzissem o caminhão par o choque inevitável. Uma grande explosão se ouviu, e o caminhou profanou o carro de bombeiros e a carne Felisberto. Não vivia mais quando percebeu ser agarrado por um daqueles seres estranhos. Seu espírito foi tragado pelas condutoras da morte lavando-o a algum lugar desconhecido. Os cavalos subiam no ar com houvesse ali escadas, carregando pelos pulsos a alma de Felisberto, o mesmo que fora até o lugar para tentar salvar vidas. Desnorteado com a passagem ele ainda teve condições de ouvir a voz distorcida de um deles dizendo “até que enfim o encontramos!”
Depois daquela noite nenhum outro acidente aconteceu naquele trecho, e muitas autoridades ainda se indagavam quando ao corpo do outro motorista, que jamais fora encontrado entre as ferragens. Apenas Raul, ouvira os tropéis dos cavalos, e avistou as sombras que carregaram Felisberto. Mas ninguém lhe daria credibilidade, não dentro daquele hospício.

terça-feira, 13 de maio de 2008

A bergamoteira e o Lobisomem

Corria pelo Pedregal – distrito duma cidade pequenina, que de tão pequena, mal aparecia no mapa – que o Seu Candinho era lobisomem. Sabe como é lugar pequeno, tem sempre seus folclores, neste caso, Seu Candinho era a bola da vez, e assim foi sendo conhecido, o lobisomem do Pedregal. Confesso que não sei como o boato surgiu, ele era amigo de todos, gostava dum trago na venda, mas não a ponto de fazer bagunça como uns e outros, ia na missa, era alguém de certa posição na comunidade. Mas nada disso fazia espantar os boatos, e a criançada nascia ouvindo dizer que Seu Candinho era lobisomem. Só podia ser pelos seus ouvidos peludos, não imaginava outra hipótese, pois em mais nada ele lembrava um homem-lobo, cruel o suficiente para atacar os rebanhos, e assustar os pescadores.

Outra característica do Seu Candinho era o capricho – pelo que ouvia os lobisomens deviam ser muito relaxados – seu sítio era um dos mais bem cuidados pela volta. Por isso seu pomar chamava a atenção. Era farto e diverso. Tinha todo o tipo de fruta. Era maio, e o dourado da bergamoteira instigavam a cobiça da molecada. As árvores repletas de frutos, suculentos, e saborosos. Não tinha como resistir. Nem mesmo os boatos da identidade secreta do velho Candinho nos fazia recuar. Numa tarde destas, passadas, então se encorajamos, e a cerca de arame farpado não foi empecilho para um bando de uns cinco moleques. E como dizia meu falecido avô, “numa reunião onde tiver mais que um guri, nem o diabo chega perto”. Baseado nisso, o Seu Candinho era pouca coisa, para a tentação que vinha das bergamoteiras.

Se espraiou um em cada galho. O chão começou amarelar das cascas caídas ao chão. Não sei como cabia tanta bergamota. Estava tão tranquilo que chegamos esquecer onde estávamos, no pomar do lobisomem. Não preciso relatar a correria que foi quando o Seu Candinho anunciou sua chegada com seu assovio cantado – ele adorava assoviar – no pomar. Quando demos por conta estávamos prá lá do sítio do Seu Josias. Mais rápido que um ráio descemos da bergamoteira, se arranhando pelos espinhos, cruzando o arame farpado, passando por buracos, até estarmos longe da vista do “lobisomem”, e em segurança. Confuso mesmo ficava o Seu Candinho sem saber porque a gurizada tinha tanto medo dele, afinal jamais se importaria pelas bergamotas.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

BORDEL DA MORTE

Demorou tempos para os boatos se espalharem. Talvez por isso muitos ossos estejam sob as dunas que cercam o Bordel. Um letreiro com lâmpadas apagadas diz “Night Love”, mas nem sempre o amor era achado, pelos que por ali se aventuraram. Sua dona era conhecida por “Joana Tetuda”, uma senhora velha, que ganhara a vida vendendo o que carregava debaixo da saia. Há anos era ela quem comandava o lugar. Mas não era ela, a responsável pelo terror que se apossava de homens incautos, sedentos pelo jubilo do prazer. Ao contrário, Joana sempre buscou justamente o contrário, em seu íntimo lhe satisfazia prover machos do que estes não encontravam em seus lares. Sentia-se infeliz apenas, pois seu corpo denso e robusto, de pele caída e seus seios quase ao umbigo não atraiam mais ninguém. Outrora o volume de suas mamas eram um atrativo, mas com a idade passaram mesmo a ser um estorvo, um peso a carregar. Ao máximo ganhava cinco, ou dez pila por um “boquete”. Nisso ela ainda era mestra, e acreditem ou não, reunia clientes para tal. Porém não era mais o suficiente, e nada mais lhe restou que ganhar dinheiro com corpo de outras “meninas”.
Ela reunia em torno de si mulheres bonitas. Sabia que era o melhor atrativo. Um par de coxas bem torneado, um rosto bonito, bundas voluptuosas, e mulheres ardentes. Para ela este era o melhor ingrediente a oferecer, e por isso era exigente com as que se apresentavam. Outra coisa de costume era possuir em seu grupo, garotas novatas, mas sempre com mais de dezoito, pois Joana tinha medo da lei. Além disso, as novatas atraiam clientes desejosos por desfrutar pela primeira vez de uma mulher da vida. Pagavam caro por isso, e assim Joana levava a vida, não de riqueza, mas com uma considerável poupança no banco. O suficiente pra não se preocupar com os tempos de vacas magras, dizia. Porém foi justamente ao surgir uma destas novatas que coisas estranhas começaram a acontecer.
A – Dona Joana! Disse uma voz rouca e penitente. A cafetina chegou a levar um susto, pois, do nada surgiram as duas figuras. Um homem de cabelos grisalho e ralos, ostentando um cavanhaque tão branco quanto os cabelos, e segura por ele uma mulher de rosto ainda menina, que carregava nos olhos um vazio tão grande quanto a eternidade da morte.
– Cruz credo! Ave Maria. Assim tu me matas de susto homem.
– Não foi minha intenção Dona Joana, a Senhora me perdoe, por favor.
– Então me diga logo o que quer.
– A senhora sabe que minha família é grande, e que a gente está de muda pra São Paulo, mas o dinheiro anda curto, então vim se por acaso a Senhora não precisa de menina nova, pois quem sabe a gente faz negócio.
– E essa menina quem é? Não me parece com idade pra função?
– É Melissa, minha filha do meio. Mas a senhora pode sossegar que ela fez dezoito três meses atrás. Não faria isso, mas o dinheiro...
– Não precisa me repetir, pois esta história, eu conheço há muito tempo. Ela é virgem?
– Olha, isso ela não é mais, mas garanto pra senhora que só um macho buliu nela até hoje.
– Disso não duvido, e lhe garanto que não devo estar errada em saber quem foi. Mas isso não me importa, a casa até que ta precisando de novidade, e ela até que é bem bonitinha. Venha no meu escritório para acertarmos o preço. Judite Venha cá. Leve essa menina até o quarto que está vago, que já passo lá pra conversar com ela. Disse a dona do bordel para uma das quengas.
Sobre a beleza da garota era uma ofensa a palavra bonitinha. Melissa ostentava um rosto de traços finos, coisa rara naquele lugar. É como se ela não pertencesse ao mundo que nasceu. Seus cabelos negros, lisos e sedosos escorriam até a metade das costas, e o verde cintilante dos olhos serviam para aumentar o mistério de seu olhar que na maioria dos momentos era vago e distante. Sua pele era tão macia como os lençóis de seda que Dona Joana tinha em seu quarto, um capricho de puta velha. Seu corpo ainda florescia. Tudo era distribuído, sem nenhuma sobra. Suas coxas eram voluptuosas, mas sem exagero, e seus seios entre o médio e o farto era algo que não se encontrava fácil. Pela idade tenra seus bicos se mostravam altivos e rijos sob um vestido com estampas floridas. Ela entrou em silêncio, e assim seguiu ao quarto que Judite a levara. Na verdade nunca alguém ouviu dela uma só palavra. No máximo gemidos falsos para apressar os mais demorados a saciarem-se em seu corpo. Seu silêncio era inquietante. Dona Joana no início quase a mandou embora, porém seus mistérios acendiam as paixões nos homens da cidade.
Joana tentou conversar com a garota. Em vão. A velha temia que ela não fizesse o serviço, já que passou semanas sem obter qualquer resposta. No entanto no dia de sua inauguração na vida, Melissa, ou simplesmente, Mel, como passaram a lhe conhecer, não decepcionou. Dona Joana sempre soube como fazer render seus investimentos, e do mesmo modo, em sua função, pode-se dizer que tinha tino ao marketing. – Minha filha, hoje é o grande dia. Vai por mim, não precisa ter medo, muitos deles querem apenas uma perna aberta, e como é sua primeira vez, irão tolerar qualquer deslize. Porém tu terás que fazer tudo o que combinamos, dance, rebole, tire o sutiã, mas não se esqueça a calcinha não – isto fazia parte de mais um plano de Dona Joana, que vendera o produto como novo, e por isso estrearia Mel, nos dias que findavam seu ciclo menstrual, por isso a proibição de tirar a calcinha no salão – faça como Judite lhe ensinou que tudo sairá bem...
Não preciso dizer que a cidade esperava por aquela noite. Há tempos não havia estréia no bordel, e os homens estavam ansiosos, e de “burra” cheia, para gastar no leilão. As luzes se apagaram e um círculo se formou ao redor da pista de dança do salão onde uma cadeira solitária repousava. Então uma música mais agitada rompeu o silêncio, e uma jovem mulher saiu de trás da copa. Serpenteava seu corpo ao som da música. Trajava um vestido vermelho, da cor do pecado. Antes mesmo que este descobrisse seu corpo, marmanjos não conseguiam esconder sua excitação ereta, frente a tal beleza. Ela se desfez do vestido, e revelou sua lingerie negra. Rebolava fazendo a volta na roda formada, e por vezes empinava seu bumbum de tamanho simétrico, elevando quase a altura de rostos vorazes em devorá-lo. E antes de as luzes se acenderem, tirou o sutiã, expondo seus seios a uma platéia que aplaudia em reverência. Depois de lances altos, o prefeito por fim arrematou a chance de estrear a novidade.
Desde então, Mel foi á quenga mais procurada no Bordel, e mesmo quando os boatos se espalharam, e a casa passou a ficar vazia, sempre quando surgia algum cliente, e por ela que procuravam: - Onde está a morena misteriosa? Perguntavam. E aí sempre surgia Mel, ostentando suas curvas seminuas. Mas estes eram poucos, pois muitos homens haviam sumido na cidade, pra quase uma centena diziam alguns. As mulheres procuravam por seus maridos sem suspeitar de seus paradeiros, mas os homens do lugar sabiam que muitos destes foram vistos pela ultima vez no Bordel da Joana, porém como quase todos os sumidos faziam parte da sociedade, o mistério dos desaparecimentos não vinha á tona pelo receio dos que sabiam de onde sumiram tantos homens. Era um lugar conservador, e era preferível ocultar o segredo deixando de freqüentar o Bordel da Joana, a ver seus nomes em escândalos familiares.
Então o Bordel de Dona Joana começou a passar por grande crise, e viver apenas de viajantes desavisados. Quase todas as putas a abandonaram, apenas Mel ficou exercendo o metie. Adoentada, a velha Joana quase nem saia de seu quarto, e pra dizer a verdade Mel era quase uma sombra solitária escondida em sombras. Porém o letreiro seguia aceso. Uma armadilha tal qual a teia da aranha na espreita por insetos descuidados. Foi o que chamou a atenção de André, que viajava há mais de três horas para uma reunião que aconteceria na manhã seguinte. “Pode ser uma boa idéia!” Pensou o viajante. Ele estacionou seu automóvel em frente ao local e desceu. Estranhou o som abafado, e quando adentrou no recinto se deparou com um salão escuro e vazio, onde uma música em tom baixo tocava e as luzes coloridas eram a única luminosidade do lugar.
Das sombras um corpo despido surgiu, e nada mais fez que um sinal convidativo. Mel nunca precisou falar, todos atendiam ao seu chamado. “Meus Deu! Que mulher é essa?” pensou em voz alta o homem ao ver Mel, nua e exalando o aroma de prazer. Os gestos dela dispensavam palavras, e ele sabia que era um convite.
Embriagado pela lábia silenciosa daquela mulher de beleza estonteante André a seguiu. Seus olhos avistavam apenas o corpo nu que o levava num caminhar lancinante e provocativo a um pequeno quarto nos fundos do prédio. A cama velha rangia enquanto o homem era tragado para dentro do corpo de Mel. André por hora tinha sensação de se encontrar por inteiro dentro da mulher que fazia sexo com ele da maneira que ele jamais fizera com alguém.
Mel nunca pode entender por quais motivos seus instintos nasciam com a lua cheia. Nestas datas que era aconselhável nenhum homem aparecer no Bordel. Apenas quando a lua se expunha por inteiro. Talvez por isso, como a lua, também os sentimentos de menina-mulher tomavam seu corpo por inteiro, e deste sentimento renascesse a cada quatro semanas, seu ódio pelos homens, pelos machos... Pois eram nestes dias de luar que a imagem de seu pai invadindo seu corpo virgem seu suor fétido e hálito embriagado a faziam lembrar o quão animal pode ser o homem. Nestas noites, seu silêncio, seus gemidos eram trocados pelos gritos de dor, a mesma dor da primeira vez que o homem que a vendeu a Dona Joana lhe fizera sentir, a dor de estar viva, e conviver com tais lembranças... Nestas noites todo homem que se aventurasse em seu corpo pagaria pelos crimes do velho Gregório.
Enquanto André fazia jorrar seu prazer, envolto nas sombras da noite, Mel via apenas o rosto do Velho Gregório. Sentia seu bafo de cachaça barata, e seu corpo produzia o mesmo asco que sentira cada vez que seu pai a violentara. A faca guardada sob o colchão deslizava pelo pescoço inocente, e Mel só percebia então que o morto não era quem ela queria matar, depois do trabalho feito. Muitas vezes ela teve de limpar o sangue, e os vestígios. As dunas eram um bom esconderijo onde jaziam ossos aos quais, André se juntaria logo.
Antes do alvorecer ela retornava ao quarto, esperando que um dia o rosto não se desfigurasse, e ali pudesse enterrar o homem a quem ela aguarda ansiosa um dia poder matar. Mas enquanto este dia não chega não aconselho ninguém chegar pelas bandas do Bordel, “Night Love”. Pelo menos, não em dias de lua cheia.

por, Douglas Eralldo