quinta-feira, 25 de junho de 2009

Campo dos Mortos

A luz penetrava entre o verde da floresta. Era um verde vivo, e com árvores um tanto esparsas. O caminho era sinuoso e de terra pedregosa, com a cor branca contrastando ao verde que a cercava.

Entre suas curvas o céu azul que nos cobria, vozes ecoavam pedindo ajuda. Eram espíritos, e embora não os visse sentia seus vultos de energia, esvoaçando pelo ambiente aberto. Eram muitas vozes. Tantas que não há como recordar o que diziam. Apenas a lembrança de aflitos pedidos de socorro.

Embora temeroso, continuava pelo caminho, onde uma curva em descida acentuada à direita conduziu-me a um cenário mais trágico. Nele o céu azul não mais se punha sobre mim, e um dia cinzento se dominava por nuvens.

Ao chegar ao plano do terreno, um pântano aterrorizador. A terra úmida e barrenta se cobria de corpos decompostos. Existiam as dezenas, nunca inteiros, apenas partes de vidas que jaziam no putrefato local. Cabeças espalhadas exibiam olhares melancólicos e amendrontados.

Não sentia medo. Talvez repulsa. Não era um cenário agradável. Mesmo assim eu seguia caminhando sobre o campo de mortos, ouvindo o som estalado de meus pés descalços sobre aquelas carcaças humanas que se desfaziam cada vez mais com meu caminhar.

sábado, 20 de junho de 2009

Despedida

Chovia naquela tarde de nuvens rebuscadas. Mas a fina e fria garoa não tocava meu corpo. Devia fazer frio, mas com este eu havia acostumado na marra. Não fazia muito que o calor e a seiva do sangue tinham condições de me esquentar.

Poucas pessoas é bem verdade, mas muito, por tudo que eu trilhara, estavam ali. Muito menos ainda, deixavam-se dominar por lágrimas, mas que bom que estas existiam, afinal, não eu assim alguém tão mau.

Uma mulher em especial, derramava mais lagrimas que os demais todos juntos. Suas lágrimas explicitavam a minha falta de coragem, e a minha ambição. E mesmo com todos estes defeitos, e que estes mesmos vícios a tivessem afastado, ali estava ela.
Mais velha, logicamente, mas com a mesma beleza, com a mesma elegância... Pecado, não poder ver seu sorriso. A este nunca mais vi igual. As gotas salgadas salpicavam a madeira, recebendo o olhar de menosprezo e ódio de minha esposa, que há muito desistira de nós, a assim tanto lhe fazia a presença dela.

Quando a primeira pá de terra começou a cobrir-me, por segundos pude sentir o calor que outrora corria por minha matéria, e mesmo sabendo que jamais faria o mesmo, ela estivera ali para despedir-se de um canalha, que coberto pelo breu eterno, teria muito tempo para pensar em suas atitudes.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O pescador

Mesmo que o feixe luminoso repentino tenha cegado João Valdir, ele seguia sua fuga entre arbustos, espinhos. Sua pele rasgada pelas armadilhas do campo expelia finos fios de sangue, deixando rubra sua pele clara.

Homem alto, magro, e pernas compridas, característica que lhe auxiliava durante a fuga, nunca imaginara que uma simples pescaria pudesse causar tantos transtornos.

Era sábado, dia de descanso na pequena fábrica, de uma cidadezinha encravada no coração no Rio Grande. Seus amigos jogavam futebol, os mais descompromissados iam ao baile, mas João gostava mesmo era de uma boa pescaria. O Arroio Tabatingaí era seu local preferido, onde apenas ele conhecia os melhores pesqueiros. Atalho certo para pescar traíras.

Homem de hábitos solitários trocava a mesa da bodega pelo anzol. Sempre sozinho. Naquela noite as estrelas cintilavam, e a lua, desnuda por inteiro, iluminava a paisagem, desobrigando-o do uso de lanternas.

Porém, nem a lua, ou tampouco o sol poderia criar tamanha luz. Quando o feixe violeta tocou a água, rápido como raio, o pescador percebeu tratar-se de algo anormal. Cegado pela luminosidade, e encharcado pela água, que respingava ao ser tocada pela luz, João pôs-se a correr, pois o medo agia como combustível para suas pernas.

O homem corria como uma lebre pelos campos. Cortando pequenos bosques de terreno úmido. Por vezes um passo mais firme, afundava-o no lodo. Mesmo ferido, e com todos os outros obstáculos que as proximidades do arroio lhe ofereciam, o cego pescador, lutava bravamente alcançar os que muitos tem e fogem: As sombras.

Seu grande desafio era ficar o mais longe possível a estranha luz violeta que o perseguia, arrancando árvores, trilhando caminhos... Ele era apenas um homem, para enfrentar algo tão sobrenatural. Ao contrário dos filmes que assistia a vítima não venceu no final. Seu corpo sumiu como a poeira se perde com o vento.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Telma & Jéssica

Exalava jasmins o quarto de Telma. Dia sete de outubro de uma sexta-feira rançosa, e gélida. Porém sob os edredons, a efervescência de corpos apaixonados transformava o pequeno espaço numa sauna. Não fazia muito que Telma se entregara aos prazeres de outra mulher. Não estava nem um pouco arrependida, pois seu antigo namorado, Hugo, o decepcionara por demasia.

Jéssica tinha cinco anos mais que ela. Experiente, tinha mãos atrevidas, que em pouco tempo conheciam cada parte do corpo de Telma, como ela jamais se conhecera. Seus músculos se contraiam a cada toque, sua pele tornava-se rubra pelo sangue vivo que corria ardente.

O porta-retratos caído sobre o bidê, e as roupas esquecidas sobre a cama, e espalhadas pelo chão do quarto mostravam a distancia que as duas mantinham do espaço físico. Seus olhos fitavam apenas um aos outros, seus lábios saboreavam apenas a pele da companheira, sorvendo o sabor de um amor pecaminoso e proibido. Telma ainda não havia assumido o romance, temendo a repercussão junto a suas amigas, e familiares. E isso começara á quase um ano.

Sugadas entre beijos e carícias para uma dimensão paralela, onde só os amantes se encontram, o mundo real deixou de existir por um momento. Dispersas, o vento repentino que começou a soprar do lado de fora da casa não foi percebido, mesmo que fizesse vibrar os vidros da janela veneziana. E não é qualquer vento, capaz de tal proeza. Tampouco a tonalidade de cor alterada da noite lhes chamou atenção. O crepúsculo de uma noite sem luz foi sugado por um tom violeta, tão radiante quanto os corações enlaçados naquele coito.

Um zunido, como a freqüência chiada de um rádio mal sintonizado, de quase imperceptível foi aumentando consideravelmente de volume, ao ponto que a luz violeta foi invadindo o quarto das duas amantes, sem respeitar a vidraça que a bloqueava. O quarto, que antes de luz tênue, para revelar apenas as siluetas formosas de suas moradoras, foi integralmente arrombado pela densa e misteriosa luz.

Quando Telma Recobrou por um instante sua consciência, sentia seu corpo sendo sugado. E não era ao clímax de um orgasmo, ou aos lábios de sua amante. Era uma sensação diferente, que jamais experimentou. Quando abriu seus olhos, havia apenas luz. Buscou olhar para seu corpo. Ele também não existia mais. E Jéssica também sumira.

Nada mais que um grito ecoou como ultima forma de eclodir sua energia, e tentar comprovar sua existência. Depois reinou o silêncio.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Pé de laranjeira

Marcos Teixeira. Advogado. Trabalhava num pequeno escritório no centro da cidade. Há alguns meses sua vida passava pó uma fase conturbada. O divórcio, e as dívidas lhe puniam diariamente, e seu rosto outrora alegre, dava lugar a uma expressão melodicamente trágica. Aquele fim de semana no sítio era uma tentativa de isolar-se dos problemas.

Sem a correria do pequeno Bernardo, ou o sorriso saliente da linda Jéssica, não era o mesmo. Antes acompanhado de uma família alegre, apenas a garrafa de whisky lhe acompanhava. Anoitecia quando, resolveu caminhar pelo sítio.

Andou ao ermo, com os pensamentos voando como os pássaros buscando novo refúgio. Chutava os pequenos torrões de terra quando escutou alguém.

- Olá, Marcos. Vida difícil não é?
- Quem é você? Onde está? O advogado ouvia a voz, porém podia avistar de onde vinha. Era uma voz suava, proferida de maneira cantada como um sussurro.
- Aqui, meu amigo. Olhe para mim. Ele até tentava, mas não enxergava nada além do velho pé de laranjeira. Com as folhas cobertas de ferrugem, e frutos amarelados a árvore talvez estivesse entre ele e o seu interlocutor. Ele a circundou, e nada...

- Aqui meu amigo, aqui... A voz insistia.
- Onde, não o enxergo.
- Aqui, olhe pra cima, sou eu mesmo, a laranjeira.
- Não pode ser! O advogado não podia crer no que acontecia. Conversava com uma árvore. Com um pé de laranjeira, para ser mais preciso. A única coisa que podia imaginar no momento era o tamanho do abuso de álcool que cometia.

- Você não está louco caro amigo. Sou eu mesma. Procure lembrar o quanto conversávamos em sua infância. Você cresceu... Me abandonou...
- Isso não está acontecendo.
- Pode acreditar que sim. E te confesso que se não fosse necessário, não o incomodaria, mas veja, olhe a si mesmo... No que se transformou o meu menino... Um bêbado, fraco...
- Não – não fale comi-mi-go.
- Por quê? Sou a única capaz de lhe fazer enxergar a verdade. Olhe eu seu redor. Não há mais ninguém. Apenas eu. Todos lhe abandonaram.
- Não é verdade.
- É sim caro amigo. Sua mulher o abandonou na primeira dificuldade. E o pior casou com seu melhor amigo. Seu filho, este seque lembra-se de teu rosto. E você meu menino, lhes dá razão, veja como enfrentou tudo isso...
- Mas...
- Não tente ponderar desculpas ao seu fracasso. Ainda tem um emprego medíocre graças ao seu chefe, e a consideração que ele tinha por seu pai. E mesmo assim você tem se esforçado para até isto perder.
- Mas...
- Nada de mas... Você falhou. Só lhe restou a bebida, e eu. Mas você deverá escolher. Quero lhe propor uma salvação para tudo isto.
- Como? Minha vida não tem mais solução...
- Sem bem disso. Por isso sou sua amiga, meu menino. Já lhe disse, que a solução está comigo. Tomei a liberdade em preparar tudo. Se aceitares minha proposta a dor do abandono, a tristeza do fracasso, e os sentimentos podres desta vida que carrega partirão.
- Não. Isto é impossível. Eu falhei. Nada apagará isto. Não tenho mais nada. Até este sítio, que foi de meu avô será penhorado. Não saio com uma mulher faz mais de ano, e não trabalho faz seis meses... Não há solução que resolva tudo isto.
- Acredite em mim meu menino. Há sim uma solução. Eu lhe amo, e farei de tudo para que esta dor lhe abandone. Olhe para sua direita, e verás a solução. Esqueça tudo o que passou, e venha para o meu lado. Seremos felizes pela eternidade. Toda esta dor passará... O advogado olhou para onde determinara a árvore. Um corda dependurada, o aguardava com um laço pronto.
- Mas...
- Meu menino. Sempre indeciso. Esta é sua única saída, mas caso queira continuar nesta vida fracassada vá em frente... Há mais whisky nesta garrafa. Aproveite. Eu tentei lhe ajudar.