quarta-feira, 24 de março de 2010

A volta dos que não foram

– Raphael, me passa a coca-cola, por favor. Disse Stela, iluminada apenas pela lua cheia, e esticando suas mãos para receber a garrafa pet.

Ele insinuou uma, duas vezes levando a garrafa e trazendo de volta. – Para! Não tem graça. Como você pode ainda fazer brincadeiras na situação em que estamos. Disse ela, que ao contrário do grupo, não estava achando graça alguma. Talvez por ter sido a única a não queimar um baseado, Stela compreendia que o grupo estava em situação delicada.

Ela sorveu a bebida gaseificada, que descia pela goela borbulhando. Olhava investigativamente para todos os arredores do estacionamento do supermercado que não passava de ruínas.

_ Vocês não acham melhor, procurarmos outro lugar? Perguntou ela.
_ Ir para onde? Aqui temos comida, bebida, e maconha... Respondeu Richard.
_ Não agüento mais este fedor! A todo instante sinto que alguma coisa vai acontecer.
_ Não há para onde ir Stela. Pelo menos aqui sobreviveremos. Disse David.
– Além disso, somos nós apenas, e os mortos... Que mal nos farão eles? Falou Sthepanie, entrando na conversa.

O grupo ao todo era formado por nove adolescentes. Estavam todos sentados em círculos sobre os entulhos do estacionamento do supermercado. A noite era iluminada pelo luar, que depois de seis dias sem aparecer no céu resolveu dar o ar das graças mais cheio que nunca. O silêncio só era quebrado pelos sorrisos causados pelo efeito da erva, ou pela vodka que os aquecia, afinal, era junho, e o frio era intenso em SwanpVille. No centro do círculo, papéis queimavam para aquecê-los.

_ Será que sobrou apenas nós? Perguntou Stela.
_ Por algum motivo, que até tenho medo de descobrir qual, acho que sim. Disse Ryann, um jovem de dezessete anos, cabelos louros caindo sobre os olhos. Até então ele se demonstrara introspectivo. Não tinha falado nada, mas a pergunta de Stela, uma jovem um pouco acima do peso, cabelos negros até os ombros, e olhar enfadonho como de peixe morto, lhe despertou curiosidade.
_ Por quê?
_ A vida e a morte serão sempre um mistério. Talvez não fosse nossa hora.
_ Mas seria á hora de tanta gente?
_ Talvez!
_ Não queria ter perdido minha família. Disse Stela, deixando um fino fio de lágrimas descerem pela face rosada.
_ Acredite, nenhum de nós queria isso. Respondeu Ryann.
_ Será que aconteceu o mesmo em outras cidades?

Esta era uma pergunta que Ryann não poderia lhe responder. Por três dias ele foi de uma ponta a outra de cidade cavalgando sua bicicleta, em fuga de SwanpVille. A cidadezinha tinha não mais que oito mil habitantes, e uma cruz de asfalto negro a cortava em quatro partes. E não importava de onde vinham, havia sempre uma ponte a ser atravessada. Ryann andou nas quatro pontes, erguidas sobre pequenos riachos. Nenhuma delas continuava de pé. As águas turbulentas chegavam a onde nunca tinham se atrevido tocar. Não tinham como sair ou chegar a SwanpVille.

_ Só há mortos. Não importa para onde vá. Disse Ele.
_ Mas é perigoso ficar aqui. Voltou Stela a tocar na mesma tecla. _ Podemos ficar doentes. Sei lá! Completou.

Stela bebeu o ultimo gole de seu refrigerante, e comeu um pedaço de pão, que ainda não tinha estragado. O resto do grupo parecia anestesiado, e alguns dormiam sobre bancos retirados das sucatas de automóveis. Ela se recostou sobre um colchão úmido, sobras de uma loja de móveis e tentou dormir. Estava cansada. Adormeceu. A imagem do pavor e do pânico se formava lentamente em seus olhos, a tal ponto de ouvir os gritos que anunciavam a morte.

Há exatos seis dias SwanpVille conhecia sua maior tragédia. Sua extinção. Outrora uma cidade próspera devido às riquezas minerais de seu solo, quando a morte chegou já era um lugar bucólico, onde apenas aposentados se encorajava viver. Stela diferia de sua população. Era secretária em um consultório médico, e temia fazer como suas amigas, e partir para outra cidade. Sua mãe doente e sua irmãzinha eram uma espécie de grades que a mantinha presa naquele lugar. Quando o primeiro tremor ocorreu, ela voltava do trabalho.

Naquela manhã, a intuição de Stela dizia que algo ruim iria acontecer. Por algum motivo ela herdara a sensibilidade de sua avó, falecida por causa de um câncer, cinco anos atrás. O sol não despertara com o relógio naquela segunda-feira. Compreendeu. “segundas-feiras nunca são boas mesmo” Pensou. Caminhou por uns dez minutos até o consultório, que naquele dia estava agitado, e cheio de emergências. Não estranhou. Na segunda-feira todos os excessos do final de semana terminavam no consultório do Dr. King. Almoçou no consultório, e estendeu sua jornada até as dezesseis horas. Quando pôs os pés na rua, percebeu que o dia estava mais negro que quando amanheceu.

O vento levantava a poeira dos paralelepípedos. As folhas voavam em círculos, e desprevenida a chuva de pingos grossos parecia querer atacar-lhe. Naquele momento ela era a única a andar pelas ruas de SwanpVille. Os carros seguiam apressados para suas casas, e quem podia se resguardava em lojas, e no supermercado central. Mas ela não podia parar, não falara com sua mãe. Estava muito preocupada, e por isso tinha que seguir em frente. Isto salvou sua vida.

Stela sentiu suas pernas bambearem, e ela caiu de joelhos. O chão tremia como se fosse feito de gelatina. Sem visibilidade ela ouvia apenas os ruídos de pneus freando. Ouvia o Som de lata batendo contra lata. Olhou para trás, e a terra se abria. Correu. Até cair novamente. Era impossível manter-se de pé. Viu um galho de árvore vindo em sua direção, protegeu-se com o braço. E desmaiou com os sons de prédios ruindo. Tudo foi muito rápido.

Ryann olhando a jovem se contorcer, movida por seus pesadelos recentes, tirou sua jaqueta a cobriu-a. Ele ficou sentado ao redor do fogo, olhando as chamas consumir o ar gélido daquela noite. Lembrava-se de como sua família fora destruída á seis dias atrás. Fazia três meses que não ia ao sítio de seus pais, e naquela segunda-feira partiria pela tardinha de volta para a capital. Caçava pássaros quando a terra tremeu. Um rasgão cortou a terra fértil coberta por uma lavoura de milho. Ele foi sugado para dentro sem poder esboçar qualquer reação. Era noite quando recobrou a consciência.

Ryann escalou o buraco com cerca de quatro metros de altura, que se enchia cada vez mais com a água da chuva incessante. Quando chegou a superfície encontrou uma terra devastada. A casa havia desmoronado. Correu até ela, mas antes que pudesse ver se havia sobreviventes, um ronco descia pelo vale. Lembrou-se da barragem que provia água para os arrozeiros. Teve tempo apenas para montar sobre a bicicleta que seu pai usava para ir até a cidade. Pedalava velozmente iluminado apenas pelos clarões dos relâmpagos de um céu em convulsão. A cada vez que olhava para trás, via a língua d’água mover-se pelo vale como uma serpente, engolindo o que encontrasse pela frente. As águas passaram tão próximas a ele que seu corpo tremia de medo.

Com a água viu descer rebanhos inteiros, e toda a vizinhança. Ele dormiu escorado a uma velha oliveira, sem frutos há muitos anos. Quando acordou no dia seguinte peregrinou por uma cidade devastada. Ela não tinha prédios altos, mas as casas estavam todas demolidas. Nenhuma construção vencera o tremor. Estava tudo em ruínas. Nas estradas e ruas, corpos estavam espalhados por todos os cantos. Em nenhum canto da cidade a vida florescia. Ryann deparou-se sempre com a morte, fria, gélida, e real, como nunca ele imaginara poder ver. Pessoas e animais não se diferiam. Estavam uns sobre outros expostos para a crueldade da natureza.

Ele ainda tentou buscar pelas saídas. No sul, e no oeste a água tomara conta. Na saída oeste, por sinal o bairro mais populoso, NewVille foi totalmente coberto pelas águas do lago que abastecia a cidade. Ao norte e ao Leste, os riachos estavam cheios e as pontes ruíram com o tremor. Ryann descobriu que não tinha para onde ir, então começo a vagar pelas ruas centrais de SwanpVille. Buscava por comida. Quando chegou aos escombros do supermercado central, encontrou os demais sobreviventes, entre eles Stela, a menina por quem começava a nutrir um sentimento especial.

Ryann pescava um instante de sono. Mas seu corpo em estado de alerta não o permitia relaxar. Dois ou três do grupo permaneciam acordados, mas ele sabia que pela quantidade de maconha que haviam ingerido não podiam ser muito confiáveis. E de uma forma ele acreditava nos temores de Stela. “Vá saber o que pode acontecer numa cidade coberta de mortos?” Pensou. Ele que não ia a cemitérios, agora transitava em túmulos a céu aberto. No amanhecer iria propor aos demais que levassem os corpos para longe, pois o fedor começava a se tornar insuportável. A umidade dos cinco dias de tempestades seguidos colaborava com a putrificação dos cadáveres. Enquanto pensava no que fazer, Ryann ouviu um barulho vindo dos fundos do estacionamento. Poderia ser algum animal. Afinal, haveria ali bastante alimento.

Com um pedaço de madeira ele se levantou. Caminhava sobre destroços, com cuidado para não pisar em nada que fosse cortante. Pé por pé se esgueirava entre os pedaços de paredes ainda na vertical. Quando seus olhos tiveram uma nesga de visibilidade, não acreditavam no que viam.

_ Ei! Aqui! Achei um sobrevivente. Alertou ele. Logo, cinco ou seis estavam ao seu redor. Olhavam uma mão erguer-se entre as folhas de zinco. Era um braço corroído pelos dias, com os músculos expostos, e com uma linha branca que na noite, sem melhor visibilidade dava a entender ser um osso. – Não acredito! Exclamou. Ryann. O sobrevivente parecia não precisar de qualquer auxílio, mesmo com seu corpo tão debilitado, e com uma surpreendente força para seu estado decrépito, revelou-se, jogando para os lados os entulhos que estavam sobre ele.

Os sete jovens estavam parados como bonecos enfeitiçados. O farrapo humano que ser erguia das tumbas, estava muito mãos para morto, que para vivo. Seu corpo estava coberto de cortes, e fraturas aparentes. Um dos ossos da perna saltava para fora de suas coxas. A cabeça coberta de sangue fazia seus cabelos escorrerem pela testa. Os olhos apresentavam apenas glóbulos saltados e brancos. Totalmente sem vida. As roupas estavam rasgadas, e o grupo ficou receoso quando a figura começou a caminhar manquitolando em sua direção. “TESTÍCULOS!” Gritou em voz afônica por causa das cordas vocais caídas para fora da garganta. _ Meu Deus! O que é isso! Exclamou Richard. O estranho sobrevivente continuava sua caminhada em direção dos jovens proferindo sempre as mesmas palavras como um disco quebrado, “TESTÍCULOS!”

Dois jovens não quiseram esperar os cumprimentos formais e partiram em disparada para o acampamento. “Zumbi!” “Zumbi!” Gritavam. Richard permanecia paralisado. Ryann foi o único a ir em direção do sobrevivente. O pedaço de madeira estava firme em sua mão, e quando ficou a menos de dois metros do ser estranho que emanava um fedor maior que todos os esgotos da capital junto, golpeou sua cabeça. O sangue coagulado jorrou para todos os lados. A madeira contra o crânio apodrecido se assemelhou a um soco numa melancia madura. O morto-vivo cambaleou. Mas continuou indo na direção de Ryann. “TESTÍCULOS!” Outro golpe na cabeça. E ele não caiu. Ryann acertou a perna do moribundo, e ela foi esmigalhada, se partindo do corpo. O homem caiu. Seus nervos tremiam. Ryann continuou a golpeá-lo na cabeça, até não mais escutar “TESTÍCULOS”.

_ O que houve? O que houve? O que houve? Repetia a mesma pergunta, a jovem Stela.
_ Zumbis. Malditos Zumbis! Dizia David Gaguejando. Ryann chegou ao grupo, amontoado novamente em círculo.
_ Temos que partir. Não é seguro. Disse Ryann.
_ Cara! Não temos para onde ir. Você mesmo disse isso. Falou Raphael. Disperso do grupo, Richard tremia. Seus lábios balbuciavam nervosamente a frase “Vamos todos morrer!” repetidamente. Ele sentia frio. Muito Frio. O frio lhe trazia o medo, e o medo criava o desespero. Sob sua jaqueta ele tinha um remédio. Um poderoso e eficaz remédio. Richard sacou uma pistola que roubou de uma guarda, morto no terremoto.
_ Vamos todos morrer, porra! Disse em tom firme, e com a arma em punho. Suas mãos tremiam.
_ Abaixe esta arma, seu idiota! Respondei David.
_ Vamos todos morrer, vamos todos morrer... Apontou na direção de Ryann e disparou. O tiro pegou no ombro do jovem porque foi desviado. David pulou contra o corpo de Richard e jogou-o no chão. O descompensado jovem iniciou uma luta que só findou com os dois cortes na jugular causado por uma faca de pão. A arma que caiu no chão parou nas mãos de Harold. Ele era muito egocêntrico para ter preocupações com os outros, por isso acabou com seus próprios problemas. O estampido seco fez terminar as discussões, e estourou seus miolos.

_Meu Deus! Que Loucura! Dizia Stela.
_ Temos que sair daqui. Voltou a dizer David.
_ Peguem o que puder carregar. Completou Ryann.

Distraídos catando alimentos, os sete sobreviventes não perceberam o florescer mortal de um jardim funesto. Os quase oito mil corpos espalhados pelas ruas de SwanpVille floresciam como rosas, erguendo-se lentamente do solo, como uma planta que germina para vida. Quando seus corpos putrefatos estavam recompostos enfileiravam-se como pelotões de guerra, cantando um único toque marcial “TESTÍCULOS!”

_ Não dá mais tempo, vamos se mandar daqui. Disse Ryann. Anna, uma moça de costumes mais liberais, ainda sob o efeito da erva tirou sua roupa ficando nua em pêlo. Correu pelada até o front de um pelotão formado na rua principal da cidade, onde não menos que mil mortos-vivos marchavam cambaleantes em direção aos sobreviventes.

_ Estou salva seus idiotas (risos...). Eu não tenho testículos! Gritava rebolando em frente um zumbi que a fitava atônico com a coragem da moça. _ Eu não tenho testículos! Gritou de novo, começando a dançar na frente do moribundo. “MAMÁ!” “MAMÁ!”. Falou o morto duas vezes, e jubilando-se nas carnes fartas dos seios de Anna.

Os gritos de dor da jovem eram escutados na esquina que levava a estrada. Mais uma centena de zumbis estava de pé. As seis balas do trinta e oito foram insuficientes. _ Para a revenda de carros. Gritou Ryann. Os outros o seguiram. Mas Harold tropeçou, sendo cercado pelos zumbis. _ Vamos salvá-lo. Disse David. _ Está louco. Tente salvar sua própria pele, e se dê por contente. Não há mais nada a fazer por ele. Respondeu Ryann desferindo golpes nos mortos que o cercavam. _ Covarde disse David. Que retornou até onde estava seu amigo. Derrubou dois ou três zumbis, mas logo tombou, sentindo a dor terrível de ser devorado pelos “TESTÍCULOS”.

Chegaram à revenda destruída. Três motos foram pegues. Ryann ainda encontrou um rifle no chão. Com um tiro explodiu os miolos do dono da revenda matando-o pela segunda vez. Os cinco sobreviventes montaram sobre as motos. Por escolha de Ryann, Stela seguiu na sua garupa. Jones foi sozinho numa moto. Noutra Jason e Lya saíram acelerando cantando os pneus no asfalto úmido. A moto derrapou, e os dois foram esmigalhados por um zumbi que dirigia um trator.

As duas motos restantes seguiram para o leste, na estrada que levava para a capital. O riacho não era longo, e talvez pudessem atravessar a nado. Os motores das motos cortavam o silêncio mortal. Os mortos devoradores de testículos tinham ficado para trás, e os três estacionaram os veículos numa estrada secundária que levava para as Margens do riacho. _ Logo amanhecerá. Disse Ryann. O sol despontava no horizonte em fagulhas. Procurou por Jones e não o viu. Olhou para trás, e três zumbis o agarravam pelas pernas. _ Corra! Disse para Stela.

Os pescadores defuntos se deliciavam com as partes de Jones. Um deles partiu atrás dos dois sobreviventes. Um barco estava ancorado. Ryann e Stela foram até ele. Entraram na água e viram se distanciar do morto-vivo que estava parado. O zumbi olhava os raios d’aurora deslizar sobre ele, queimando suas carnes podres. Ele caiu no chão. Quando amanheceu apenas ás águas do rio, vermelhas de tanto sangue escorriam correnteza abaixo.

Ryann e Stela encontraram na outra margem. Roubaram-no e dirigiram sentido capital. Na cidade vizinha, o fluxo seguia como se nada tivesse ocorrido. Seus rostos de expressões cansadas pediam descanso. _ Vamos para minha casa. Vou cuidar de ti. Disse Ryann para Stela.

Duas horas depois, o carro atravessa as pontes que conduziam a grande metrópole. Stela dormia como uma criança sem medo. Ryann havia ligado o rádio, e batia as mãos ao volante seguindo o som de “Paradise City”. Música relevante, para quem pretendia chegar ao seu paraíso. Nem bem venceu a ponte que cortava o grande rio que contornava a cidade o veículo dançou sobre o asfalto que se rachava como terra seca. Freou o carro e olhou para trás vendo sucumbir nas águas á gigantesca estrutura de concreto. Stela acordou sobressaltada. Quando olhou para frente viu os edifícios implodindo como frutas podres. Ela levou suas as mãos as cabeças, e chorou. _ Vai começar tudo de novo!