quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Os esquecidos - Canibais

Porto Alegre está quente nesta tarde de primavera. A selva de concreto que nos transformamos cada vez mais avança sobre nós, e torna nosso habitat mais infernal. São ônibus que cruzam seus corredores guiados por motoristas absortos em seus problemas, carros que enchem as avenidas num ritmo frenético, orquestrado por buzinas, e muitas vezes por conflitos e palavras de baixo calão...

Confesso nunca ter notado antes estes cenário caótico. No entanto dizem que a proximidade com a morte nos deixa mais sensíveis, e assim estou nesta tarde. Sensível. Percebo toda esta agitação, mesmo com meus passos apressados descendo a Barros Cassal. O relógio marca treze horas, e muitos auxiliares administrativos dos prédios comercial dos arredores aproveitam sua meia hora de almoço para conversarem na calçada, fumarem um cigarro, ou até mesmo cuspir o café e reclamar da qualidade, com uma morena que olha admirada ao colega que consegue sorver a bebida fraca, e morna.

Meu destino é a estação rodoviária. Por alguns segundos fico na dúvida, sigo pela Voluntários até o viaduto, ou vou pela Garibaldi, trajeto mais simples. Decido fugir dos mendigos, e das prostitutas que decoram a Garibaldi, e sigo pela voluntários, atravessando de forma destemperada seu trânsito de fluxo contínuo e veloz. Quero evitar um trecho mais longo até a faixa de segurança, e logo estou do outro lado, que me dá acesso às calçadas sob o viaduto. O céu está azul, mas o odor de urina é insuportável, e sozinho naquele caminho percebo que ele não é muito utilizado.

Olho para o asfalto quente, e carros passam sem notar minha presença, só acompanhada pelos olhos de uma gente que sequer podem assim ser denominadas. Seus corpos são cobertos por uma pele suja, cheia de cicatrizes, vestindo maltrapilhos, que só por sua imundície são capazes de causar uma infecção. Moram ali imagino. E não são poucos, que me miram com seus olhos esbugalhados, e bocas cujos dentes se perderam, e os que restam estão amarelos, e podres. “Esquecidos”. Assim os denomino. Carros e pessoas que por ali passam, nãos os vêem, ou fingem... Mas alie estão. Famintos, farrapos, cenograficamente se assemelham a zumbis que vimos nos cinemas. Culpo-me por percebê-los. Antes tivesse tomado outro caminho.

Meus passos se tornam mais rápidos, e logo estou prestes a atravessar sobre o asfalto do viaduto. Os veículos vindos dos bairros da capital me ignoram. Afinal, não era para estar ali. Não qualquer sinal que permita minha travessia, mas eu insisto. Sinto apenas a dor do choque de minhas amolecidas carnes contra o duro e vil metal do coletivo que esfacela meu corpo em dezenas de pedaços. Então os “Esquecidos”, por alguma providência são lembrados, e minhas carnes agora jazem em seus dentes carcomidos pelas cáries. Por um instante a sociedade lembrou-se dos “Esquecidos”, frente à chocante cena que assistiam, mas logo esqueceriam, e os habitantes daquele viaduto voltariam à penumbra do anonimato.










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