sexta-feira, 18 de junho de 2010

O ataque do morcego

Nunca vá morar numa fazenda se não estiver disposto a passar por alguns sustos, e enfrentar uma dezena de medos. Lugares distantes, e de paisagem envelhecida, onde as fronteiras estão distantes, e o socorro sempre dá a impressão que não irá chegar. Christina aprendeu tudo isso da pior maneira... Tinha dezesseis anos. Seus cabelos escorriam por trás dos ombros, e esvoaçavam ao movimento do vento gélido de inverno. Seus olhos azulados eram como um fragmento de cristal cintilante, e seus lábios rubros e carnudos provocavam os desejos mais sórdidos nos colegas de aula. Seu corpo desenhado a mão vestia um justo e impecável jeans, uma jaqueta marrom de couro para esquentar seu dorso, e inapropriados tênis brancos para um dia barrento de chuvisco insistente.

Era um dia especialmente cinzento, com nuvens carregadas de água e frio que pintavam o celeste num manto de chumbo donde o sol atrevia a aparecer apenas em pequenas nesgas de luz. E com o avançar das horas, as sombras tomavam toda a paisagem, e quando ela desembarcou do transporte escolar, o sol descia o horizonte para esconder-se por detrás dos matos de eucaliptos a dezenas de quilômetros dali.

Como fazia todo dia, teria de caminhar até a sede da fazenda, onde seus pais foram morar, contra sua vontade e de seus outros irmãos. Eram dois quilômetros até a casa, na qual aproveitava para pensar em seus amores, e ouvir seu Ipod.

Dispersa, envolvida pela música e tantos outros pensamentos Christina não brindava seus olhos com a pintura criada bem na sua frente. As Saliências do campo coberto por um trigal que dançava com o vento, cortado pela sinuosidade da estrada de terra formavam uma imagem merecedora de nobre moldura. Numa das curvas á direita, bem na metade do caminho, uma frondosa secular figueira quebrava a lisura do terreno com seus galhos espaçosos, e na baixada da estrada, á esquerda de um açude a casa, onde moravam, cuja chaminé expelia a fumaça do fogão de lenha.

Nesta altura o sol havia sido tragado pelo horizonte como bola oito sugada pela caçapa de sinuca, pincelando de sombras todo o vale, deixando apenas a silueta da velha figueira revelada pelos últimos traços de luminosidade. Nos pensamentos da jovem havia espaço apenas para Jonas, o menino de sorriso largo, dentes extremamente brancos e hálito de hortelã que ela beijara à tarde.

A distração de quem se assegurava no ermo e na solidão do campo, onde o vizinho mais próximo estava a trinta minutos de caminhada foi sua perdição. Sem poder imaginar qualquer perigo naquela terra isolada, o alvoroço e grasnar dos pássaros no coração da copa da árvore passou despercebido. Assim como o salto no vazio da imensa criatura pendurada em seus galhos, e o iniciar da batida de suas asas de quiróptero.

Christina sentiu o perigo apenas quando o ar tornou-se mais gélido e próximo por causa do ar forçados pelo batimento das asas do grande morcego. Quando ela olhou por sobre seu ombro, a criatura voava com gula em sua direção. Seus olhos se tomaram de espanto, e os pêlos de seu corpo se eriçaram de medo arrepiando cada parte de seu corpo, separando suas carnes de suas espinhas. A única coisa que restou foi correr.

Os cadernos carregados contra o peito macio foram jogados ao chão. Seus pés imploravam por asas, e ela sentia a criatura cada instante mais próxima. Não era uma criatura comum. Não era apenas um morcego, mas sim o tenebroso híbrido com corpo de homem, coberto de pêlos, pernas humanas, braços humanos, mas cuja face miscigenada não podia afirmar ser um homem. As asas enormes e negras nasciam em suas costas e batiam contra o ar criando um característico barulho intimidador.

Ela olhava para frente, e a desesperança lhe invadia o coração, pelo cálculo cruel que lhe dizia que o monstro estava mais próximo que a segurança de sua casa. Até que o inadiável aconteceu, e como um goleiro, a criatura jogou-se contra Christina como se esta fosse uma bola de futebol, e os dois se embolaram rolando no chão, até frearem contra uma pequena moita.

O corpo do perseguidor era frio como os mortos, e suas mãos ásperas como uma lixa percorriam seu corpo juvenil, desnudando-a por inteiro até revelar suas mais formosas curvas. O inverno e o medo deixavam sua pele rija, enquanto a língua do monstro deslizou por cada centímetro de sua epiderme sorvendo seu sal emanado de seus tremores mais delirantes. Sem dó ou remorso, o híbrido a possuiu, e como forma de demarcar território e explicitar a outros animais que possuíra aquela tenra fêmea, o estranho morcego abriu sua boca diminuta de onde saltava um par de presas e cravou-as em seu seio esquerdo, deixando dois pequenos orifícios como lembranças. Saiu em revoada quando ela ainda estava desmaiada em trêmula ao relento da noite.

– E foi isto que aconteceu pai. Disse ela agasalhada por um cobertor, sentada numa rústica poltrona ao lado de uma lareira, na tentativa de aquecer seu corpo debilitado, sendo observada por um círculo familiar que a contemplava incrédulos. – Nunca vi... Vi... Ela tentou continuar, mas não conseguia articular mais nenhuma sílaba, deixando lágrimas escorrerem.
– Ora menina. Iniciou o pai num tom de reprimenda. – Eu, com o coração apertado, acalentando minha raiva contra quem te fez isto, e você me conta uma história estapafúrdia destas, e quer que eu acredite... Tá pensando porque sou velho sou burro... Vamos, Conte-me toda a verdade, enquanto tenho paciência. Bradou Josimar.
– Mas pai, é... A verdade...

Josimar era um homem rústico que sempre primou pela verdade. E quando encontrou sua filha jogada ao frio, nua, com arranhões pelo corpo, a primeira coisa que fez foi caçar pelas proximidades um provável agressor. Sem nada encontrar, levou-a para casa, até reanimá-la. Mas ouvir sua história lhe soou como acinte, e por mais homem do campo que fosse acostumado com as mais variadas histórias, não podia crer na que tinha ouvido da boca trêmula de sua filha, embora ela lhe parecesse bem convincente.

Ele tinha em mãos um surrado cinto, que chicoteou a primeira vez nas nádegas de sua filha, ecoando um som dolorido. – Vamos menina, eu quero a verdade... A verdade...

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Drakónballus

Num remoto e perdido tempo ergue-se os pilares de um mundo chamado Tuc-Dhor. Não é um mundo como o nosso. Não são pessoas como nós. Não são monstros como os nossos. Mas vivem numa sociedade, onde muitos dos nossos erros estão presentes, e caminham para um futuro glorioso, como outrora caminhamos... O rosto quadrado do homem esbanjava gotas de suor, mesmo naquela noite ébria e gelada, onde os sentidos se conflitavam, num emaranhado de emoções a fazer perder-se o mais valoroso dos homens. A barba crescia como se cem sacos de adubos tivessem sido jogados em sua face. Os olhos estalados em busca de uma ínfima luz que lhe norteasse o caminho em meio às trevas davam a impressão de ter um surto de overdose.

Desde que ele jogara-se em missão inglória tinha noção dos perigos que o confrontariam. No entanto nem o mais abissal dos monstros podia ser tão terrível como a vasta solidão dos últimos dias. O jovem hábil na espada flertava com a loucura, num prelúdio de fracasso.

A tenra e jovem tez se perdeu com os efeitos drásticos dos climas por qual seu corpo passara. Suas pernas, de músculos firmes, bambeavam fraquejadas pela fome que o acompanhava nas últimas semanas. A espada de aço nobre pesava como mil espadas de uma infantaria completa. Seu tormento maior a lembrança de que aquilo tudo nada mais era que apenas o caminho para um encontro com mais temível das criaturas.

Como haveria de vencer a batalha, se o caminho pedregoso lhe roubara suas forças? Como enfrentar horrenda criatura se seus punhos não erguiam mais a espada? Como sobreviver a uma batalha já desigual em condições normais? Como não morrer? A cada pergunta feita por si mesmo, vinha-lhe a mente as frases adversativas de seus entes para que não se dedicasse a tamanha loucura.

Seu próprio mestre mor advertiu-lhe: - Sem dúvida, tu és um grande guerreiro. Sua espada é rija, e seus punhos não relutam frente o inimigo. Seu coração é puro, sua honra de alto grau, porém sua coragem muitas vezes aproxima-se da prepotência. Não lhe aconselharia a tal jornada. Disse o homem que o ensinou nos preceitos dos cavaleiros.

Sir Joel Carl Van, um dos mais respeitados cavaleiros da guarda de Roraf, eminente rei de Kua-R encontrou o menino Sygmund Lewis bradando sua espada de madeira contra um sórdido comerciante, capaz de afanar mercadorias de jovens e crianças. O homem estava deitado, quando Sygmund elevava a arma à nuca para desferir um golpe que machucaria bastante do espertalhão.

Tinha treze anos o garoto quando o chefe da cavalaria o convidou para uma visita ao castelo, e algumas semanas de treinamento.

Àquela época, cavaleiros não tinham muito mais que fazer. Perambulavam pelos campos e cidades em busca de qualquer atrito que valesse a pena empunhar suas espadas. Não era tarefa fácil nos primórdios da terceira era, quando os reis sonhavam com a paz e o desenvolvimento das descobertas.

Mesmo assim a mítica que cobria os honrosos guerreiros e suas virtudes, sempre declamadas em poemas e canções foram o suficiente para que Sygmund aceitasse a oferta, e deixasse a pequena fazenda em que produziam os mais vermelhos e saborosos tomates de Tuc-Dhor.

As semanas viraram meses, se Multiplicaram em anos, e quando a juventude desabrochou Sygmund, era uma grande promessa de cavaleiro, talvez o único capaz de suceder seu mestre, entre todos seus discípulos.

Foi durante este período que a lenda começou a invadir sua cabeça, e de um desejo, tornar-se obstinação... Obsessão...

Nas conversas encobertas pela noite, e longe dos ouvidos do mestre, se falava sobre as mais temíveis criaturas, as quais apenas os mais valentes cavaleiros poderiam glorificar-se do jubilo da vitória.

Foram estas conversas que fizeram Sygmund contrariar seu mestre e partir. A noite caía silenciosa, e as boas almas dormiam quando ele tomou posse de seus poucos pertences e partiu caminhando sorrateiramente. Queria despedir-se, mas sabia que não teria compreensão.

O poder supremo e a imortalidade galgada com a vitória não atraiam seu mestre. Ao contrário, ele insistia que era um fardo demasiadamente pesado para carregarem os homens, onde muitos se perderam nos caminhos negros das sombras ocultas, e nunca mais retornaram para o lado luminoso dos benfeitores. Para ele, cavaleiros eram cavaleiros, e isto por si só bastava. “Aos Drakôns, as coisas de Drakôns”. Dizia o mestre tentando fazer que seus discípulos compreendessem que no mundo cada um tem seu destino. Seu fardo.

Mas Sygmund discordava. Qual homem não gostaria de vencer a criatura mais temível que já viveu sobre Tuc-Dhor? Qual cavaleiro negar-se-ia o direito em derrotar o mais forte dos monstros? E qual direito em abdicar tamanho poder aos homens?

Seu coração latente e palpitante como costumeiro nos jovens afirmava a necessidade de demonstrar sua força. Sua coragem. Sabia ele que apenas os mais corajosos poderiam gozar de tamanho feito. Era o que ouvia entre os aspirantes, e entre muitos cavaleiros. Quem vencesse um Drakôn provaria ser o maior entre todos os cavaleiros. Um guerreiro hierarquicamente acima dos demais. E isto era o máximo que poderia desejar alguém sem o sangue real escorrendo nas veias.

E Sygmund estava longe de ser um nobre de linhagem real, mas seu coração era inflado com desejos grandiosos, e eram esses sonhos o combustível para a jornada que iniciara á meses.

Na solidão mórbida o guerreiro estava prestes a tombar.

Seus braços tateavam o nada absoluto, enquanto rastejava buscando uma saída para o labirinto invisível em que se metera. Era como se encontrasse um buraco vazio. Talvez fosse exatamente isso.

Naquela noite quando saiu furtivamente estava decidido a rumar ao norte, além das fronteiras geladas, donde se supunha que terminasse o mundo. Quando a paisagem verdejante cessasse um novo mundo abrir-se-ia a sua frente, onde lendas antigas diziam que um vasto plano branco se estenderia ao infinito. Depois dele estariam as montanhas dos Drakôn, onde em suas cavernas cobertas de pedras se escondiam as feras.

E fazia á muito que ele cruzara o infinito branco, que lhe cegou os olhos por semanas até jogar-lhe no escaldante e surreal caldeirão dos demônios, numa terra em brasas, e mar em fogo, o qual venceu graças ao seu laço preso a um animal alado.

Naquela altura, em alguns momentos chegou cogitar estar errado. No entanto o brilho da recompensa não se compara ao fosco do comum, do habitual. E ele seguiu sua jornada...

Suas lembranças mais recentes eram um vale onde unicórnios selvagens pastavam a vontade sem as rédeas de seus cavaleiros. O verde era vivo, e a abóboda celeste, anil como nunca virá. Foi quando fez sua ultima refeição... E já fazia muito tempo.

Quando e como foi sugado pelas sombras, que se pareciam eternas, ele não sabia. Não lembrava. Nem mesmo quanto tempo transcorrera, já que no infinito o tempo não anda como na terra dos homens.

Quando resolveu ir atrás de seus sonhos queria provar ao seu mestre que ele estava errado. Ele queria convencê-lo de que é possível dominar a energia incontida do poder. Queria provar que nem todos os homens se corrompem pela oportunidade. Até então, todos os outros que tentaram haviam falhado.

E ele talvez estivesse mais longe que isto. Estava perdido. Sem nenhuma luz. Sua consciência era sua única e voraz companhia. O medo não era mais pelos Drakôns, mas de si mesmo.

Rastejava como uma serpente. Seus braços se moviam como quando nadava no pequeno rio perto de casa. Era uma época feliz, onde passava longe de seu coração o desejo de ser cavaleiro. Só a pureza resgatada por aquelas lembranças davam-lhe forças de continuar em frente rumo ao nada.

Desmaiou. Mesmo assim seu corpo em movimento compulsório ia em frente.

Quando recobrou a lucidez estava coberto por arbustos ásperos que lhe riscavam a pele. O cheiro úmido era cheiro de vida. Pulsante, como em qualquer outros dos sete reinos de Tuc-Dhor. Em seu íntimo questionava ter morrido.

Mas não estava morto. Continuava vivo. Muito vivo. A coragem e a obstinação lhe serviram de carruagem, quando seus pés não tiveram mais forças físicas em prosseguir. Ele havia ultrapassado a barreira do fim do mundo, e chegado ao outro lado, onde nas montanhas que via ao longe, residiam os Drakôns, em suas galerias ornadas em ouro e diamantes.

Diziam uns, que estavam ali para proteger as riquezas de terra tão esplendorosa. Para outros, não passavam de ladrões que surrupiavam as jóias dos homens para levarem à distante clausura. Fato apenas, que os que tentaram resgatar, ou explorar tais riquezas jamais regressaram ao mundo dos homens.

Sygmund estabeleceu seu acampamento ao sopé das montanhas, donde nuvens como algodão a circundavam. Era necessário refazer suas forças, e reestudar cada um de seus golpes. “Só os tolos se jogam a batalha sem ter um plano.” Pensava.

Quando suas virtudes começaram a brotar mais enfaticamente, este era um dos principais ensinamentos de seu mestre. – Há de estudar seu adversário!... Conhecer seus pontos frágeis, e principalmente reconhecer seus pontos fortes. São eles que poderão derrotá-lo. Dizia, sempre ao adotar um golpe inesperado no aprendiz.

E um Drakôn não era um homem. Não era um cavaleiro. Era um mito. Com muito mais virtudes que qualquer outro guerreiro, portanto com muito mais chances de sair vitorioso na batalha titânica. Para vencer um Drakôn Sygmund teria de relembrar cada uma das características da criatura.

A começar, um Drakôn constituía-se num magnífico ser. Mediam entre trinta e cinqüenta metros. Gigantescas e apavorantes serpentes, cujas escamas pequenos pontos nas mais variadas tonalidades de vermelho, laranja e amarelo, davam a impressão que o majestoso réptil entraria em combustão.

Conta á história que o criador de Tuc-Dhor teve uma filha humana. Uma linda mulher de cabelos loiros até os calcanhares que desfilava nua pelos jardins de Belmont, a campina sagrada, na qual os homens deveriam sempre cultuar sua onipotência.

Tal forma encantadora hipnotizou um corajoso cavaleiro que peregrinava em busca de paz, num tempo em que as lanças predominavam, rasgando a pele, e jorrando o sangue bem antes que os homens dividissem o tempo em eras.

Um homem enfeitiçado é o mesmo que um animal selvagem. E o cavaleiro se enfeitiçou pelo brilho radiante da mulher a banhar-se no lago, e ficou a sua espreita possuindo-a contra sua vontade, num amor contrariado cuja semente gerou uma criança proibida, esquecida pelos homens, e pelo criador.

Irritado o criador proibiu que sua filha continuasse a viver naquele mundo profano onde os homens não conseguiam conter seus ímpetos selvagens, e a resgatou para seu mundo luminoso onde a energia dos mortos reside após a morte. Como castigo ele amaldiçoou o cavaleiro na forma mais desprezível, a de uma serpente. E o castigo perduraria pela eternidade, para jamais esquecer o mal que fizera.

O Criador tinha um irmão. Um reflexo negativo de sua bondade. No universo, cada força se complementa por seu lado sombrio, e o irmão negro do Criador que todos conheciam por demônio, viu naquela maldição uma oportunidade de arrebanhar súditos para sua vingança contra o criador.

Ao guerreiro amaldiçoado, Asbar usou sua energia maligna para dar-lhe a forma gigantesca, e o veneno expelido em gases de suas narinas sombrias e inflou seu ódio por tudo e por todos. Seria um leal guerreiro a obedecê-lo fielmente suas ordens macabras, que tinham um único intuito, o fim da criação.

No entanto o guerreiro tomara-se de arrependimento. Ele declinou dos sentimentos sombrios, e passou a praticar boas ações na esperança de um dia o criador libertá-lo do castigo. Fez isto por séculos, mas a compaixão nunca chegou.

Sem esperanças, após mil anos exilou-se depois do fim do mundo, onde nenhum homem habitasse, e ele pudesse esquecer seu erro. Nas montanhas encontrou outra serpente, e quando ele não mais se lembrava de seu passado humano, apaixonado por um animal, procriou a segunda geração de Drakôns.

O que aconteceu depois com o guerreiro, nunca se soube. Se por ventura um dia o criador teve-lhe a tão esperada compaixão... Se Asbar o matou como pensavam alguns, ou se por acaso ele continuava a viver nas montanhas, era ainda um mistério. Certo é que sua prole se esparramou naquele lugar ermo, dando margem as mais diversas versões.

Sygmund tinha em seu coração a pureza, balanceada com o desejo de ser o maior entre todos os cavaleiros. Meditava entre os arbustos estudando cada detalhe, pois nada poderia passar despercebido.

Ouviu de seu pai. De seu mestre. E dos outros alunos as sucessivas histórias sobre guerreiros em busca do poder e da alma dos Drakôns. Estava naquele lugar justamente por isso. Desejava um El dourado desconhecido, do qual só se conjecturava hipóteses, na maioria das vezes resultantes em fracassos.

As lendas nascem com histórias. Com feitos que passa de lábios para ouvidos, cujos lábios nem sempre repetem identicamente como ouviram. O jovem guerreiro corria o risco de tudo que ouvira não passar de fantasia, invenção de mentes férteis, cujos lábios começaram a enfeitar as histórias ouvidas. “Mas não há glória, sem riscos!” Dizia, na tentativa de obter a benção de seu mestre.

A benção não veio. Ele não acreditava na possibilidade de um guerreiro capaz de dominar tal criatura. Para o mestre não havia necessidade de testar a coragem com feito que sequer podia ser comprovado. Por isso Sygmund partiu na calada da noite, caminhando por Kua-R meses a fio até adentrar no fim do mundo.

Mas agora estava prestes a provar que seu mestre estava errado. A existência daquelas montanhas além fronteiras do mundo conhecido pelos homens eram fortes indícios de as lendas serem reais.

Dormiria, depois de jantar uma lebre assada em brando fogo. Na manha seguinte daria continuidade a sua jornada.

Pela primeira vez, desde sua partida deu-se o luxo de sonhar. Nos sonhos lhe visitou Sir Edmund, Rei de todos os reinos que dizem no passado ter dominado um Drakôn, e se apossado de seus poderes inumanos para governar Tuc-Dhor sob uma única bandeira.

De maneira alguma tinha a forma rude descrita na história. Seus olhos em nada lembravam a psicopatia exaltada pelos contrários ao mito dos Drakónballus. Era um homem sereno cavalgando a enorme serpente sobre as nuvens róseas que pintavam os céus. Sentia paz em seu coração... A liberdade do ar inflando-lhe os pulmões tinha perfume de jasmins... Até que a serpente desceu das nuvens para rastejar sobre a terra, expelindo seus gases e suas labaredas incandescentes espalhando o fogo sobre cada povoado...

Sygmund acordou sobressaltado. A noite se esvaía. Então ele começou a galgar a montanha.

Ao passo que avançava aos mais altos píncaros, o cheiro doce dos jasmins ia gradativamente sendo substituído pelo odor de mau hálito dos porcos selvagens. A terra fértil era invadida pelo solo pedregoso, e frágil, onde nenhuma vida se atrevia a nascer.

Quando o sol chegou ao coração do céu dizendo que o dia escorria pela metade, Sygmund rompera as nuvens, que estavam sob seus pés como um assoalho fofo e macio. Ele recostou-se numa pedra achatada, e alimentou-se com um pedaço de lebre olhando para o horizonte.

Ou ele estava noutro mundo, ou Tuc-Dhor era bem maior que os homens podiam crer. Este era o pensamento ao observar a imensidão posta a sua frente, a perder-se de vista, num encontro onde não podia se afirmar o que era o céu, ou que era a terra.

“Não devo estar distante.” Pensou, embora durante toda a escalada sequer ter visto uma única caverna. “Como poderão existir tais criaturas, se não há cavernas?”.

Ele prosseguiu sua busca até o anoitecer, quando a noite desceu sobre eles e as montanhas. Naquele instante, o ar rarefeito custava a lhe oxigenar. Sygmund estava no cume mais alto de Tuc-Dhor, onde jamais nenhum homem esteve. Dormiu ali mesmo, no relento gelado, aguardando pela nova manhã, que desceria pelo outro lado da montanha, onde talvez encontrasse as cavernas.

Quando o alvorecer lhe sorriu numa pintura mágica em tons alaranjados, rosas, e azuis ele foi apresentado a mais pura expressão de beleza criada pelo Criador. Não tinha a menor dúvida que aquele cenário fora inspirado nos olhos de suas sete filhas, ninfas que habitavam as terras eternas.

Os raios do sol atingiam o pico deslizando como uma seta em direção ao vale, entre um círculo de montanhas que ele só pode avistar ao amanhecer.

Era uma vale imenso, cujo lago azul tomava dois terços. O verde provinha de uma diversidade sem igual de árvores, de todas as estaturas, fungos brancos gigantes davam um ar inóspito, e o colorido das borboletas e flores não poderiam ser imaginados nem pela mente mais alucinógena dentre os pintores do reino. “Seria este o grande segredo? O grande tesouro protegido pelos Drakôns?” pensou Sygmund, julgando ter descoberto o éden.

Esperava encontrar o Drakôn num lugar lúgubre. Sem vida, onde nem os demônios tivessem coragem de atravessar seus portões. “Talvez tenha me enganado no caminho.”

O sol banhou o vale deixando-o mais luminoso. Quando tocou um enorme ser serpentando entre as árvores do bosque, uma luz forte e incandescente avivou os sonhos do jovem cavaleiro. “Lá esta ele”... “Lá está ele...”

O guerreiro começou a descida de modo afobado, tropeçando numa pedra. Rolou com sua armadura pesada, por centenas de metros até ser seguro por um tronco de pinheiro. Tonto ele viu estrelas girar no seu entorno...

Sentiu um odor pestilento, o qual não podia imaginar ser do vale visto do alto. Quando tomou em si novamente, percebeu que tudo não passara de uma miragem.

Ele tinha mergulhado num caldeirão fúnebre, onde pilhas de ossos de animais e de homens emolduravam a terra morta onde as árvores não tinham folhas, e a vida se escondia sob a terra podre. O lago não passava de um poço lamacento, cujas borbulhas ferventes emanavam o enxofre do coração do mundo submerso das criaturas sombrias.

De um buraco grotesco, então surgiu o pior de todos os inimigos. Aquele por quem Sygmund esperava ansioso. Justamente o qual valeria á pena ultrapassar tantos obstáculos como ele ultrapassou.

Sygmund tinha um avô que para os parentes não passava de um velho louco, ao qual ninguém, a não ser quando sua boca desprovida de dentes fazia barulhos ao tomar sua sopa de tomates. Mas para os guerreiros, este foi o homem que lhe ensinou a melhor das lições. “O sabor de nossas vitórias está no tamanho das batalhas que travamos para obtê-las.”

Enquanto o monstro se aproximava, ele lembrou-se do velho. Empunhou sua espada com a certeza de uma batalha gigantesca. Pensava no sabor que teria a vitória.

O Drakôn que emergia das profundezas era bem mais aterrorizador que os contos e as lendas que viajavam de boca em boca. Nada era capaz de descrever aqueles olhos incandescentes e verticais. Olhos do mal. Drakôn’s não eram afeitos de visitas.

“Não aspire seus gases.” Dizia o mestre. Sygmund rolou para direita fugindo da baforada pestilenta que o monstro expeliu de imediato. Assim livrou-se de muitos visitantes, que caíam estáticos, dessecando a pele pela ação do veneno mortal.

“Cuidado com a cauda”. Pulou Sygmund desviando-se da cauda que se movia com rapidez, encoberta pela névoa da fumaça venenosa. O choque valia pelo soco de cem homens, e atingiu de raspão as pernas do guerreiro que se desequilibrou, caindo no chão.

No ato, com o corpo agachado ergueu o escudo, forjado do mais duro dos troncos de carvalho. “Fuja das chamas.” O veneno das narinas era tão mortal quanto o fogo emanado de sua língua bipartida, que se digladiava com o escudo fazendo Sygmund recuar.

“Se ainda estiver vivo, prepare-se para o bote.” Nem a lâmina da espada mais afiada poderia reproduzir o poder cortante das presas de um Drakôn. Sygmund tinha se protegido atrás de uma pedra, já que seu escudo estava para ser vencido pelas chamas. Num gesto ágil e veloz ele saltou como um acrobata entre a boca imensa do monstro, que lhe desferiu o bote, que deveria ser fatal.

“E se depois de dois minutos de batalha, não estiver morto, então procure pela cruz entre seus olhos, e repouse sua espada.” Dizia a lenda. Era o último passo, mas a tarefa não era tão simples.

O Drakôn estava deveras irritado. Não gostava de intrusos como já disse. Mas detestava ainda mais os que não morriam cedo. Começou a bufar e soltar fogo, para todos os lados, de maneira que as chamas e a névoa caíssem sobre o intruso.

Tinha entre eles uma árvore morta, de galhos podres, que dificilmente poderiam suportar o peso de uma armadura. Mas era a única possibilidade de Sygmund que pensando nos perigos treinou em sua meditação a prática da apnéia. Poderia ficar sem respirar pelo menos meia hora.

O tempo foi suficiente para esgueirar-se pela árvore. Seu inimigo começava a gloriar-se da vitória, por causa da neblina mortal que cobria o vale. “Nunca subestime os mais fracos.” Ensinou seu mestre. Se o Drakôn tivesse sido treinado por ele talvez não cometesse vil erro. Do alto do pinheiro falecido o guerreiro saltou sobre a criatura que buscava pelo corpo de qual queria saborear as carnes, e com a espada firmada por seus punhos jogou-se sobre o lombo do monstro.

Não houve tempo para reações. A lâmina encaixou na cruz entre os olhos, como a espada de Arthur encaixou-se na pedra sagrada. O aço foi penetrando centímetro por centímetro, sendo envolto por uma energia cósmica de redenção.

Esta energia resultante emanada do golpe extravasava o aço, invadindo o corpo de Sygmund, que sentia suas carnes invadidas por uma força descomunal, num ritual, que cobriu os céus de raios e nuvens.

Quando a cópula energética findou o corpo de Sygmund estava revigorado, e ele montava um subserviente animal, cujo cabo da espada do lado de fora da cabeça do Drakôn formava um pequeno chifre. “Enquanto a espada na cruz repousar, senhor do Drakôn, guerreiro será.” Completava a lenda.

Nascia naquele vale, no glorioso feito de Sygmund, o primeiro Drakónballus – Os senhores dos Drakôn’s. No entanto havia para ele uma missão ainda maior. Provar que seu mestre estava errado, e que podem sim os homens não deixar-se corromper pelo poder.

O Drakôn e seu senhor partiram então para seu regresso a Kua-R.

Uma nova lenda nascia. Contada de lábios para ouvidos, e novamente para lábios que repetiam com novas formas, e novos verbos... E depois de mil anos, nem mesmo Sygmund o primeiro Drakónballus, conseguia definir qual das histórias eram verdadeiras...

Ele havia tornado-se eterno, assim como seu escravo.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A colheitadeira do demônio

Os mosquitos tamborilavam suas canções vampirescas. A sinfonia ecoava pelo quarto, mas não era o suficiente para abafar o ronco de Gilberto. Vez por outra ele sentia as picadas, tapeava o próprio rosto, absorto em seus sonhos. Maria, ao seu lado remexia-se de um lado ao outro da cama, emaranhando os lençóis. Seu sono estava como um pescador, jogando e tirando os anzóis da água. Toda vez, que o sono se ia, contemplava seu esposo, dormindo como um rei, em seu pequeno castelo...

O dia tinha sido cansativo para ele. Passara o dia em Cachoeira do Sul, negociando a máquina que tanto desejara para sua lavoura. Acompanhou a carreta até sua fazenda de quinhentos hectares em Pantano Grande, onde cultivava soja e arroz. Pagou a vista por seu desejo, e acompanhou com seus olhos a entrega, contemplando o investimento, e satisfazendo-se com o crescimento de sua vida.

Outra nem mesmo terras ele tinha. Arrendou um pouco aqui. Outro ali, e safra após safra começou a adquirir suas terras. E para aquele ano, em que dobrara o plantio, a colheitadeira lhe era uma necessidade. Por isso tanto zelo, capaz de esgotar suas forças naquele dia.

O casal era banhado pela luz prateada do luar. O vento quente de um verão marcante balançava as cortinas de linho. Os sete cães davam a tranqüilidade para manter as janelas abertas, um costume que Gilberto herdara de seu pai. Ele continuava a estapear os mosquitos, e sua mulher, mais uma vez sucumbia ao sono.

Mas o descanso de Maria era passageiro, e bastava o zunido de um único grilo que ela despertava. No entanto, aquele barulho era bem mais agudo e alto que os grilos e os mosquitos. Com as mãos ela sacolejou o peito desnudo de seu homem.

- Gilberto, acorda! Acorda homem! Dizia ela, tentando acordar o homem que girava de lado, e insistia em dormir. Acorda homem! Vamos...
- O que foi mulher? Disse ainda em estado sonâmbulo.
- Acho que tem ladrão.

Ele esfregou os olhos e cutucou as orelhas com o dedo grosso, retirando toda a cera depositada. Os cães ladravam alucinadamente. Sete cães ladrando são mais barulhentos que as trombetas do inferno. E eles latiam cada vez mais. Um ronco ecoava em sentido crescente, e Gilberto logo reconheceu: - Minha colheitadeira.

Em sua mente flashes daquela incrível e imponente máquina inflavam sua coragem. – Nenhum safado vai roubar minha colheitadeira! Bradou.

Gilberto planejara cinco anos antes a aquisição da máquina. Tudo isso quando tinha apenas três quintos de sua propriedade. Quando viu seu sonho realizar materializado naquela monstruosa máquina de colheita, começou a nutrir um amor e um apego pelo aço. Só ele, e ninguém mais sabiam cada vitória e cada derrota que tivera ao longo de sua vida.

Sequer vestiu suas bermudas. Jogou uma camiseta sobre o corpo e saiu de cuecas e meias até a sala onde guardava o rifle e a munição.

- Fica dentro de casa, mulher! E pegue este revólver... Se for preciso use.
- O que tu vai fazer? Tome cuidado.
- Nenhum safado entra na minha propriedade e me rouba.
- Gilberto, eles podem ser um bando... Ouvi que é assim que eles atacam as fazendas.
- Pois vão se dar mal, aqui... Tem chumbo pra todo mundo.

Ele abriu a porta, e saiu alumiando o pátio com uma lanterna na mão esquerda, e a arma na outra. O galpão estava uns duzentos metros dali. Iluminou cada pedaço, e não viu movimentação alguma, a não ser a colheitadeira saindo lentamente do galpão.

- Quem está aí? Repetiu a pergunta umas cinco vezes sem ser respondido. Focou a lanterna na cabine, mas não dava para ver nada em seu interior por causa dos vidros escuros. Os cães rodeavam-na, latindo ferozmente. A colheitadeira girou, e suas luzes focaram os olhos de Gilberto, cegando-o por instantes. Depois ela acelerou, e partiu com rapidez pás a lavoura que ficava próxima. Os cães ganiram como que temessem p lobo-guará, e se amontoaram nas pernas de seu dono.

Atônito Gilberto caminhou até margens da lavoura, e passou a assistir a cena insólita. A máquina começou a colher, como se tivesse vontade própria. Primeiro andou em círculo, e depois em linhas retas. De repente ela parou no meio da lavoura. Seu motor abrandou. Ela girou na direção de Gilberto.

Como dois caubóis do velho oeste, ambos se encaravam. Parados um de frente para o outro, a lua cheia iluminava suas siluetas. O motor da máquina, como numa provocação voltou a gritar. Os faroletes se ligaram, e ela acelerou. A espingarda atirou uma, duas vezes... A máquina estava cada segundo mais próxima. As mãos do agricultor tremiam. O cano da arma se multiplicava por dez, e ele não conseguia encontrar o centro... A máquina estava cada vez mais perto... Mais perto...

A colheitadeira avançou sobre Gilberto e seus cães. Os ferros começaram a girar, e ela os colheu quando o homem ainda tentava recarregar a espingarda. Os dentes de aço afiados trucidavam suas carnes fazendo o sangue jorrar em sua lataria amarela. Seu motor silenciou após o último ganido dos cães... Voltou-se a ouvir a sinfonia dos mosquitos e dos grilos

O sol raiava quando as sirenes luminosas cortavam as estradas de chão. A patrulha rural tinha sido chamada por Maria, antes mesmo do destino fatal de seu esposo. O sargento desceu da viatura e encontrou uma senhora pálida como um vampiro. Não movia um único músculo, como se fosse uma estátua. A boca entreaberta murmurava palavras indecifráveis.

- Sargento! Acho que esta porta ta trancada por dentro. Disse o soldado Aníbal.
- Arrombe!
Um pontapé foi suficiente. O soldado deu um passo para trás, e levou as mãos no nariz. – Nossa que fedor de chifre queimado! Exclamou. Nas margens da lavoura outro soldado empoleirado numa velha figueira chamou mais uma vez a atenção do sargento. – Ei! Dá uma olhada nisto daqui sargento.

O negro de quase dois metros de altura se pendurou entre os galhos, e de cima observou a estranha figura desenhada na lavoura. Um círculo, e no seu interior dois triângulos invertidos formavam uma estrela.

Enquanto os dois observavam a figura e torciam para que a imprensa não descobrisse o fato, o soldado Aníbal grudou seus ouvidos nos lábios da senhora que continuava murmurando. “Demônio... Demônio... Demônio...” Como uma vitrola arranhada ela dizia repetidamente a palavra que fazia o coração de Anibal gelar, e seus lábios beijar o crucifixo que o acompanhava no pescoço.

quarta-feira, 24 de março de 2010

A volta dos que não foram

– Raphael, me passa a coca-cola, por favor. Disse Stela, iluminada apenas pela lua cheia, e esticando suas mãos para receber a garrafa pet.

Ele insinuou uma, duas vezes levando a garrafa e trazendo de volta. – Para! Não tem graça. Como você pode ainda fazer brincadeiras na situação em que estamos. Disse ela, que ao contrário do grupo, não estava achando graça alguma. Talvez por ter sido a única a não queimar um baseado, Stela compreendia que o grupo estava em situação delicada.

Ela sorveu a bebida gaseificada, que descia pela goela borbulhando. Olhava investigativamente para todos os arredores do estacionamento do supermercado que não passava de ruínas.

_ Vocês não acham melhor, procurarmos outro lugar? Perguntou ela.
_ Ir para onde? Aqui temos comida, bebida, e maconha... Respondeu Richard.
_ Não agüento mais este fedor! A todo instante sinto que alguma coisa vai acontecer.
_ Não há para onde ir Stela. Pelo menos aqui sobreviveremos. Disse David.
– Além disso, somos nós apenas, e os mortos... Que mal nos farão eles? Falou Sthepanie, entrando na conversa.

O grupo ao todo era formado por nove adolescentes. Estavam todos sentados em círculos sobre os entulhos do estacionamento do supermercado. A noite era iluminada pelo luar, que depois de seis dias sem aparecer no céu resolveu dar o ar das graças mais cheio que nunca. O silêncio só era quebrado pelos sorrisos causados pelo efeito da erva, ou pela vodka que os aquecia, afinal, era junho, e o frio era intenso em SwanpVille. No centro do círculo, papéis queimavam para aquecê-los.

_ Será que sobrou apenas nós? Perguntou Stela.
_ Por algum motivo, que até tenho medo de descobrir qual, acho que sim. Disse Ryann, um jovem de dezessete anos, cabelos louros caindo sobre os olhos. Até então ele se demonstrara introspectivo. Não tinha falado nada, mas a pergunta de Stela, uma jovem um pouco acima do peso, cabelos negros até os ombros, e olhar enfadonho como de peixe morto, lhe despertou curiosidade.
_ Por quê?
_ A vida e a morte serão sempre um mistério. Talvez não fosse nossa hora.
_ Mas seria á hora de tanta gente?
_ Talvez!
_ Não queria ter perdido minha família. Disse Stela, deixando um fino fio de lágrimas descerem pela face rosada.
_ Acredite, nenhum de nós queria isso. Respondeu Ryann.
_ Será que aconteceu o mesmo em outras cidades?

Esta era uma pergunta que Ryann não poderia lhe responder. Por três dias ele foi de uma ponta a outra de cidade cavalgando sua bicicleta, em fuga de SwanpVille. A cidadezinha tinha não mais que oito mil habitantes, e uma cruz de asfalto negro a cortava em quatro partes. E não importava de onde vinham, havia sempre uma ponte a ser atravessada. Ryann andou nas quatro pontes, erguidas sobre pequenos riachos. Nenhuma delas continuava de pé. As águas turbulentas chegavam a onde nunca tinham se atrevido tocar. Não tinham como sair ou chegar a SwanpVille.

_ Só há mortos. Não importa para onde vá. Disse Ele.
_ Mas é perigoso ficar aqui. Voltou Stela a tocar na mesma tecla. _ Podemos ficar doentes. Sei lá! Completou.

Stela bebeu o ultimo gole de seu refrigerante, e comeu um pedaço de pão, que ainda não tinha estragado. O resto do grupo parecia anestesiado, e alguns dormiam sobre bancos retirados das sucatas de automóveis. Ela se recostou sobre um colchão úmido, sobras de uma loja de móveis e tentou dormir. Estava cansada. Adormeceu. A imagem do pavor e do pânico se formava lentamente em seus olhos, a tal ponto de ouvir os gritos que anunciavam a morte.

Há exatos seis dias SwanpVille conhecia sua maior tragédia. Sua extinção. Outrora uma cidade próspera devido às riquezas minerais de seu solo, quando a morte chegou já era um lugar bucólico, onde apenas aposentados se encorajava viver. Stela diferia de sua população. Era secretária em um consultório médico, e temia fazer como suas amigas, e partir para outra cidade. Sua mãe doente e sua irmãzinha eram uma espécie de grades que a mantinha presa naquele lugar. Quando o primeiro tremor ocorreu, ela voltava do trabalho.

Naquela manhã, a intuição de Stela dizia que algo ruim iria acontecer. Por algum motivo ela herdara a sensibilidade de sua avó, falecida por causa de um câncer, cinco anos atrás. O sol não despertara com o relógio naquela segunda-feira. Compreendeu. “segundas-feiras nunca são boas mesmo” Pensou. Caminhou por uns dez minutos até o consultório, que naquele dia estava agitado, e cheio de emergências. Não estranhou. Na segunda-feira todos os excessos do final de semana terminavam no consultório do Dr. King. Almoçou no consultório, e estendeu sua jornada até as dezesseis horas. Quando pôs os pés na rua, percebeu que o dia estava mais negro que quando amanheceu.

O vento levantava a poeira dos paralelepípedos. As folhas voavam em círculos, e desprevenida a chuva de pingos grossos parecia querer atacar-lhe. Naquele momento ela era a única a andar pelas ruas de SwanpVille. Os carros seguiam apressados para suas casas, e quem podia se resguardava em lojas, e no supermercado central. Mas ela não podia parar, não falara com sua mãe. Estava muito preocupada, e por isso tinha que seguir em frente. Isto salvou sua vida.

Stela sentiu suas pernas bambearem, e ela caiu de joelhos. O chão tremia como se fosse feito de gelatina. Sem visibilidade ela ouvia apenas os ruídos de pneus freando. Ouvia o Som de lata batendo contra lata. Olhou para trás, e a terra se abria. Correu. Até cair novamente. Era impossível manter-se de pé. Viu um galho de árvore vindo em sua direção, protegeu-se com o braço. E desmaiou com os sons de prédios ruindo. Tudo foi muito rápido.

Ryann olhando a jovem se contorcer, movida por seus pesadelos recentes, tirou sua jaqueta a cobriu-a. Ele ficou sentado ao redor do fogo, olhando as chamas consumir o ar gélido daquela noite. Lembrava-se de como sua família fora destruída á seis dias atrás. Fazia três meses que não ia ao sítio de seus pais, e naquela segunda-feira partiria pela tardinha de volta para a capital. Caçava pássaros quando a terra tremeu. Um rasgão cortou a terra fértil coberta por uma lavoura de milho. Ele foi sugado para dentro sem poder esboçar qualquer reação. Era noite quando recobrou a consciência.

Ryann escalou o buraco com cerca de quatro metros de altura, que se enchia cada vez mais com a água da chuva incessante. Quando chegou a superfície encontrou uma terra devastada. A casa havia desmoronado. Correu até ela, mas antes que pudesse ver se havia sobreviventes, um ronco descia pelo vale. Lembrou-se da barragem que provia água para os arrozeiros. Teve tempo apenas para montar sobre a bicicleta que seu pai usava para ir até a cidade. Pedalava velozmente iluminado apenas pelos clarões dos relâmpagos de um céu em convulsão. A cada vez que olhava para trás, via a língua d’água mover-se pelo vale como uma serpente, engolindo o que encontrasse pela frente. As águas passaram tão próximas a ele que seu corpo tremia de medo.

Com a água viu descer rebanhos inteiros, e toda a vizinhança. Ele dormiu escorado a uma velha oliveira, sem frutos há muitos anos. Quando acordou no dia seguinte peregrinou por uma cidade devastada. Ela não tinha prédios altos, mas as casas estavam todas demolidas. Nenhuma construção vencera o tremor. Estava tudo em ruínas. Nas estradas e ruas, corpos estavam espalhados por todos os cantos. Em nenhum canto da cidade a vida florescia. Ryann deparou-se sempre com a morte, fria, gélida, e real, como nunca ele imaginara poder ver. Pessoas e animais não se diferiam. Estavam uns sobre outros expostos para a crueldade da natureza.

Ele ainda tentou buscar pelas saídas. No sul, e no oeste a água tomara conta. Na saída oeste, por sinal o bairro mais populoso, NewVille foi totalmente coberto pelas águas do lago que abastecia a cidade. Ao norte e ao Leste, os riachos estavam cheios e as pontes ruíram com o tremor. Ryann descobriu que não tinha para onde ir, então começo a vagar pelas ruas centrais de SwanpVille. Buscava por comida. Quando chegou aos escombros do supermercado central, encontrou os demais sobreviventes, entre eles Stela, a menina por quem começava a nutrir um sentimento especial.

Ryann pescava um instante de sono. Mas seu corpo em estado de alerta não o permitia relaxar. Dois ou três do grupo permaneciam acordados, mas ele sabia que pela quantidade de maconha que haviam ingerido não podiam ser muito confiáveis. E de uma forma ele acreditava nos temores de Stela. “Vá saber o que pode acontecer numa cidade coberta de mortos?” Pensou. Ele que não ia a cemitérios, agora transitava em túmulos a céu aberto. No amanhecer iria propor aos demais que levassem os corpos para longe, pois o fedor começava a se tornar insuportável. A umidade dos cinco dias de tempestades seguidos colaborava com a putrificação dos cadáveres. Enquanto pensava no que fazer, Ryann ouviu um barulho vindo dos fundos do estacionamento. Poderia ser algum animal. Afinal, haveria ali bastante alimento.

Com um pedaço de madeira ele se levantou. Caminhava sobre destroços, com cuidado para não pisar em nada que fosse cortante. Pé por pé se esgueirava entre os pedaços de paredes ainda na vertical. Quando seus olhos tiveram uma nesga de visibilidade, não acreditavam no que viam.

_ Ei! Aqui! Achei um sobrevivente. Alertou ele. Logo, cinco ou seis estavam ao seu redor. Olhavam uma mão erguer-se entre as folhas de zinco. Era um braço corroído pelos dias, com os músculos expostos, e com uma linha branca que na noite, sem melhor visibilidade dava a entender ser um osso. – Não acredito! Exclamou. Ryann. O sobrevivente parecia não precisar de qualquer auxílio, mesmo com seu corpo tão debilitado, e com uma surpreendente força para seu estado decrépito, revelou-se, jogando para os lados os entulhos que estavam sobre ele.

Os sete jovens estavam parados como bonecos enfeitiçados. O farrapo humano que ser erguia das tumbas, estava muito mãos para morto, que para vivo. Seu corpo estava coberto de cortes, e fraturas aparentes. Um dos ossos da perna saltava para fora de suas coxas. A cabeça coberta de sangue fazia seus cabelos escorrerem pela testa. Os olhos apresentavam apenas glóbulos saltados e brancos. Totalmente sem vida. As roupas estavam rasgadas, e o grupo ficou receoso quando a figura começou a caminhar manquitolando em sua direção. “TESTÍCULOS!” Gritou em voz afônica por causa das cordas vocais caídas para fora da garganta. _ Meu Deus! O que é isso! Exclamou Richard. O estranho sobrevivente continuava sua caminhada em direção dos jovens proferindo sempre as mesmas palavras como um disco quebrado, “TESTÍCULOS!”

Dois jovens não quiseram esperar os cumprimentos formais e partiram em disparada para o acampamento. “Zumbi!” “Zumbi!” Gritavam. Richard permanecia paralisado. Ryann foi o único a ir em direção do sobrevivente. O pedaço de madeira estava firme em sua mão, e quando ficou a menos de dois metros do ser estranho que emanava um fedor maior que todos os esgotos da capital junto, golpeou sua cabeça. O sangue coagulado jorrou para todos os lados. A madeira contra o crânio apodrecido se assemelhou a um soco numa melancia madura. O morto-vivo cambaleou. Mas continuou indo na direção de Ryann. “TESTÍCULOS!” Outro golpe na cabeça. E ele não caiu. Ryann acertou a perna do moribundo, e ela foi esmigalhada, se partindo do corpo. O homem caiu. Seus nervos tremiam. Ryann continuou a golpeá-lo na cabeça, até não mais escutar “TESTÍCULOS”.

_ O que houve? O que houve? O que houve? Repetia a mesma pergunta, a jovem Stela.
_ Zumbis. Malditos Zumbis! Dizia David Gaguejando. Ryann chegou ao grupo, amontoado novamente em círculo.
_ Temos que partir. Não é seguro. Disse Ryann.
_ Cara! Não temos para onde ir. Você mesmo disse isso. Falou Raphael. Disperso do grupo, Richard tremia. Seus lábios balbuciavam nervosamente a frase “Vamos todos morrer!” repetidamente. Ele sentia frio. Muito Frio. O frio lhe trazia o medo, e o medo criava o desespero. Sob sua jaqueta ele tinha um remédio. Um poderoso e eficaz remédio. Richard sacou uma pistola que roubou de uma guarda, morto no terremoto.
_ Vamos todos morrer, porra! Disse em tom firme, e com a arma em punho. Suas mãos tremiam.
_ Abaixe esta arma, seu idiota! Respondei David.
_ Vamos todos morrer, vamos todos morrer... Apontou na direção de Ryann e disparou. O tiro pegou no ombro do jovem porque foi desviado. David pulou contra o corpo de Richard e jogou-o no chão. O descompensado jovem iniciou uma luta que só findou com os dois cortes na jugular causado por uma faca de pão. A arma que caiu no chão parou nas mãos de Harold. Ele era muito egocêntrico para ter preocupações com os outros, por isso acabou com seus próprios problemas. O estampido seco fez terminar as discussões, e estourou seus miolos.

_Meu Deus! Que Loucura! Dizia Stela.
_ Temos que sair daqui. Voltou a dizer David.
_ Peguem o que puder carregar. Completou Ryann.

Distraídos catando alimentos, os sete sobreviventes não perceberam o florescer mortal de um jardim funesto. Os quase oito mil corpos espalhados pelas ruas de SwanpVille floresciam como rosas, erguendo-se lentamente do solo, como uma planta que germina para vida. Quando seus corpos putrefatos estavam recompostos enfileiravam-se como pelotões de guerra, cantando um único toque marcial “TESTÍCULOS!”

_ Não dá mais tempo, vamos se mandar daqui. Disse Ryann. Anna, uma moça de costumes mais liberais, ainda sob o efeito da erva tirou sua roupa ficando nua em pêlo. Correu pelada até o front de um pelotão formado na rua principal da cidade, onde não menos que mil mortos-vivos marchavam cambaleantes em direção aos sobreviventes.

_ Estou salva seus idiotas (risos...). Eu não tenho testículos! Gritava rebolando em frente um zumbi que a fitava atônico com a coragem da moça. _ Eu não tenho testículos! Gritou de novo, começando a dançar na frente do moribundo. “MAMÁ!” “MAMÁ!”. Falou o morto duas vezes, e jubilando-se nas carnes fartas dos seios de Anna.

Os gritos de dor da jovem eram escutados na esquina que levava a estrada. Mais uma centena de zumbis estava de pé. As seis balas do trinta e oito foram insuficientes. _ Para a revenda de carros. Gritou Ryann. Os outros o seguiram. Mas Harold tropeçou, sendo cercado pelos zumbis. _ Vamos salvá-lo. Disse David. _ Está louco. Tente salvar sua própria pele, e se dê por contente. Não há mais nada a fazer por ele. Respondeu Ryann desferindo golpes nos mortos que o cercavam. _ Covarde disse David. Que retornou até onde estava seu amigo. Derrubou dois ou três zumbis, mas logo tombou, sentindo a dor terrível de ser devorado pelos “TESTÍCULOS”.

Chegaram à revenda destruída. Três motos foram pegues. Ryann ainda encontrou um rifle no chão. Com um tiro explodiu os miolos do dono da revenda matando-o pela segunda vez. Os cinco sobreviventes montaram sobre as motos. Por escolha de Ryann, Stela seguiu na sua garupa. Jones foi sozinho numa moto. Noutra Jason e Lya saíram acelerando cantando os pneus no asfalto úmido. A moto derrapou, e os dois foram esmigalhados por um zumbi que dirigia um trator.

As duas motos restantes seguiram para o leste, na estrada que levava para a capital. O riacho não era longo, e talvez pudessem atravessar a nado. Os motores das motos cortavam o silêncio mortal. Os mortos devoradores de testículos tinham ficado para trás, e os três estacionaram os veículos numa estrada secundária que levava para as Margens do riacho. _ Logo amanhecerá. Disse Ryann. O sol despontava no horizonte em fagulhas. Procurou por Jones e não o viu. Olhou para trás, e três zumbis o agarravam pelas pernas. _ Corra! Disse para Stela.

Os pescadores defuntos se deliciavam com as partes de Jones. Um deles partiu atrás dos dois sobreviventes. Um barco estava ancorado. Ryann e Stela foram até ele. Entraram na água e viram se distanciar do morto-vivo que estava parado. O zumbi olhava os raios d’aurora deslizar sobre ele, queimando suas carnes podres. Ele caiu no chão. Quando amanheceu apenas ás águas do rio, vermelhas de tanto sangue escorriam correnteza abaixo.

Ryann e Stela encontraram na outra margem. Roubaram-no e dirigiram sentido capital. Na cidade vizinha, o fluxo seguia como se nada tivesse ocorrido. Seus rostos de expressões cansadas pediam descanso. _ Vamos para minha casa. Vou cuidar de ti. Disse Ryann para Stela.

Duas horas depois, o carro atravessa as pontes que conduziam a grande metrópole. Stela dormia como uma criança sem medo. Ryann havia ligado o rádio, e batia as mãos ao volante seguindo o som de “Paradise City”. Música relevante, para quem pretendia chegar ao seu paraíso. Nem bem venceu a ponte que cortava o grande rio que contornava a cidade o veículo dançou sobre o asfalto que se rachava como terra seca. Freou o carro e olhou para trás vendo sucumbir nas águas á gigantesca estrutura de concreto. Stela acordou sobressaltada. Quando olhou para frente viu os edifícios implodindo como frutas podres. Ela levou suas as mãos as cabeças, e chorou. _ Vai começar tudo de novo!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Acordo

Patrícia estava nua. Seu corpo não era mais o mesmo, de vinte anos. A pele não era tão tenra quanto antes, e seus olhos caídos não revelavam a esperança de outrora. Sobre a cama, o gordo homem repousava, apitando como uma locomotiva, repousando depois de quinze minutos de atenção. Em outras épocas ela até chegou a gostar do que fazia, sentiu prazer, deu prazer. Até ganhou um pouco de dinheiro, mas a maior parte morreu nas mãos de agentes ambiciosos e violentos...

No presente tudo aquilo lhe era uma obrigação, uma cruz a carregar, um martírio. Não conseguia mais fugir de seu passado, que a enterrava cada vez mais no presente, onde as portas estavam fechadas, e cuja única janela aberta era aquela de seu quarto, cuja cortina voava com a brisa da tardinha. Tinha asco de si mesmo. Tinha asco do homem sobre a cama. Para piorar seus sentimentos, sabia que depois dele viria, outro, e depois do outro, mais outro...

Ela olhava ao seu redor. O quarto quente, do hotel barato. O único que conseguia pagar. Sentou-se, e pegou sobre o pequeno bidê – arquivo de camisinhas, e seu único bem, uma carteira de couro com seus documentos – um maço de cigarros. Acendeu um, para relaxar, até que cessasse o tempo de Jordan. O quarto impregnado pelo odor de bebida barata, misturado com o cheiro vil de sexo nos lençóis amarelos e surrados pelo tempo, a faziam viajar em seus próprios pensamentos.

Enquanto a fumaça dançava como bailarinas do municipal na atmosfera tensa do ambiente ela olhava vagamente para um horizonte distante. Um futuro diferente. Mesmo que os sonhos lhe fossem distantes, e a esperança uma velha senhora de bengalas, Patrícia insistia em mantê-los vivos. Não queria muito. Uma vida estável, saber que haverá dinheiro para comer, para pagar a luz, porque não ser amada, algo que a vida nunca lhe proporcionara.

No entanto eram apenas sonhos de uma noite quente e abafada em que o ventilador zunia seu fraco motor, para deixar tudo como estava, quente. Queria tomar banho, sentir-se limpa. Ainda tinha dez minutos até o próximo cliente. Sairia do chuveiro para acordar o rápido e vigoroso Jordan, receber os Trinta Reais, e aguardar pelo próximo nome da agenda. Cinco minutos foram suficientes para disfarçar o sexo recém feito.

Ela saiu do banheiro enrolada numa toalha áspera e desconhecida de qualquer marca de amaciante. O homem ainda apitava como locomotiva. Seu corpanzil estava estirado sobre a cama, entregue ao sono como um rei farto após seu banquete. Ela procurava por sua calcinha negra, que estava perdida AM algum lugar do quarto quando ouviu passos pelo corredor. Estaria adiantado o próximo homem, pensou ela.

Os passos eram cadenciados. O som estalava no piso gélido, como se a sola do sapato fosse de metal, ou o visitante possuísse cascos. Ela sentia a aproximação. Era pela porta dos seu quarto que ele procurava. – Quem esta aí? Não está na hora ainda. Aguarde mais um pouco. Disse ela pensando ser uma pessoa. No entanto não era quem ela pensava. Não era alguém esperado.

Quando a maçaneta girou, a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que se tratava de alguém muito mal educado. Porém, por algum motivo alheio a sua própria vontade, ela não fez qualquer objeção. A porta rangeu com á pouco fazia sua cama de metal. Pela fresta que se abriu um odor de fumo pestilento se sobrepôs ao da bebida, e ao do sexo. – Quem é você? Perguntou ela novamente. Já com um tom de medo na voz.

A porta revelou o corpo de um homem esguio e alto. Vestia um casaco negro, que combinava com seu chapéu de aba curta. A luz relutante da única lâmpada fluorescente do corredor não lhe permitia ver nada mais que seus traços longilíneos, e seus olhos avermelhados torneados por suas sobrancelhas espessas e em formato de V. Quando o homem, de voz melodiosa como a dos pastores a convencer seus fiéis a pagarem o dízimo, fez o uso da palavra, foi para fazer uma proposta a Patrícia.

Ele insinuou as conquistas que ela tanto sonhara. Dinheiro, a tranquilidade de uma vida estável, e a beleza de outrora, que se consegue com os itens anteriores. Até romances lhe foi cogitado. As palavras do misterioso homem tocaram fundo o coração de Patrícia. Vislumbrar seus desejos fazia querê-los mais do que nunca antes. As palavras ardilosas do visitante a convenciam de que tudo era possível. – Eu aceito! Disse ela, mesmo lhe sendo colocadas algumas contrapartidas.
Quando ela disse aceitar o acordo, o homem, vitorioso em sua empreitada, deu-lhe as costas. Podia partir. Sua tarefa havia sido cumprida, e de sosleio, disse – Não esqueça, nosso acordo está valendo a partir desta noite. Alguns passos foram ouvidos, e logo o silêncio voltou a reinar no andar, exceto é claro pela locomotiva que continuava apitando.

Patrícia havia compreendido muito bem o acordo que fizera. Guardava sempre em sua bolsa um canivete suíço, comprado no Paraguai. Passou sua lâmina no pescoço de Jordan como um açougueiro passa sua navalha nos porcos. O homem urrou como um porco. Sangrou como um porco. Morreu como um porco...

Nos olhos de Patrícia a esperança voltava a ser uma jovem de bumbum arrebitado, seios fartos, e sorriso estampado. Não havia em sua alma qualquer arrependimento pelo que tinha feito. Considerava justa a troca de uma vida a cada sete dias, pelos trinta e poucos anos que a vida lhe negligenciara.

Ela tomou um segundo banho. Sentiu sua pele mais lisa, mais tenra. Tocou seu próprio corpo. Seus seios lhe pareciam mais empinados. Masturbou-se. Até perfume ela voltou a usar. Vestiu-se, pegou a carteira do homem envolto a uma poça de sangue. Ela estava recheada com umas quatro ou cinco notas de cinqüenta. Desceu do prédio, e caminhando com um rebolado extremamente lascivo pela calçada. Estava feliz, e seus pensamentos imaginavam quando seu misterioso visitante começaria a cumprir a outra parte do acordo.

Distraída, atravessava a avenida quando ouviu um estridente gritar de pneus. Um carro, modelo importado. Um tipo de automóvel que poucos podem ter quase a atropela. O coração de Patrícia está pulsante. Há tanto medo nela, que não consegue perceber o olhar do homem que está ao volante. É um olhar apaixonado. – Você quer uma carona? Pergunta ele. Ela aceita, e entra no carro. E então o homem, belo, cheiroso e rico, lhe faz uma pergunta surpreendente – Por favor, não pense que sou bobo, mas por acaso você acredita em amor à primeira vista?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O proprietário

A mansão Salles está em festa. Seus corredores amplos, seus jardins, estão abarrotados de visitas. Os fogos estouram, e garçons que mais se parecem pingüins perdidos no calor tropical andam de um lado para o outro equilibrando suas bandejas que levam o bem mais precioso da noite: o champanhe. Aliás, garrafas e mais garrafas de Moet & Chandon. Bernardo estava disposto a não poupar naquela noite...

A iluminação, ainda com motivos natalinos deixava o ambiente brilhante e moderno. A luz prateada da luz só compunha o cenário, como um acessório de luxo. O jardim, com seu gramado bem aparado, suas floreiras coloridas, a piscina no centro com sua água azul como o céu, pintavam a fotografia onde mesas decoradas com finas toalhas brancas recepcionavam os convidados que se sentavam em grupos, e falavam de suas afinidades.

Mais de quatro dezenas de casais foram convidados seletamente. Apenas os mais íntimos a família de Bernardo Salles, empresário bem sucedido do ramo de mineração. Seu rosto resplandecia o renascimento aos quarenta, seus cabelos negros de cabelo com corte reto, e seus olhos cintilantes numa tonalidade tão indecisa quanto escritores ao escolher uma história, não se definiam, nem entre o verde, nem azul. Seu sorriso sim era estridente, mais estridente que um grito, que um desabafo.

Até que seu último convidado chegasse, Bernardo não abandonou o hall de entrada da mansão. Os carros, normalmente os modelos mais sofisticados, conduzidos por motoristas trajados á caráter desembarcavam seus proprietários, que subiam a pequena escadaria em mármore italiano, cumprimentados pessoalmente por Bernardo, e por Letícia. E por mais que Letícia seja coadjuvante no relato que lhes falo, não poderei negligenciar sua beleza encantadora, com seus longos e escorridos cabelos louros, seu sorriso branco qual marfim, e seu corpo escultural, adornado por um vestido branco, que naquela noite, não passava de um simples detalhe.

Quando todos enfim estavam acomodados, o anfitrião bebericou uma taça de champanhe, e discretamente retirou-se ao seu quarto. Trocaria de roupa antes que a contagem regressiva lhe trouxesse o novo ano. Antes, porém comemoraria a partida do ano que agonizava lentamente nos ponteiros de um velho relógio a cordas, num carrilhão antigo. Artefato de colecionador. E aquele ano, que em poucos minutos veria a corda da forca tirar-lhe a vida para então renascer com outro numeral, fora especialmente especial para Bernardo. Não digo isto, pela estonteante experiência sexual que Letícia lhe proporcionara com outra amiga. Tampouco pelo contrato com compradores americanos que lhe rendeu alguns milhões de dólares, ou pelo sucesso das ações de sua empresa lançada na bolsa de valores. Tudo isto era pequeno, comparado ao presente que aquele ano lhe proporcionara. Algo que não se distingue valor, mas que é mais raro que o mais bruto dos diamantes. Algo, que sem ele todo o resto é supérfluo, pois simplesmente não existe. A vida. Foi este bem sem condições de mensurar valor que aquele ano, quase acabado lhe fizera o favor de lembrar o quão importante é. Seu renascimento não poderia passar despercebido. Por isso aquela festa que inundava de alegria sua casa. Ele era grato, e antes tão avesso a atividades sociais, naquele dia queria compartilhar com todos seus convidados a celebração do dia-a-dia.

Desnudou-se do “smoke” de gala com o qual recepcionou suas visitas e tratou de vestir algo mais informal. Jeans e camiseta. Brancos. Estava pronto para voltar para o champanhe, para Letícia, e para seus amigos. Foi interrompido por um som seco, como o pisar de pés afoitos no assoalho. – Que está aí? Perguntou. Ninguém respondeu. Teve a nítida sensação que alguém passara pelo corredor. Foi até a porta, mas nas viu. “Foi só impressão.” Pensou.

Viu que a janela estava aberta. Por ela um vento gélido inundava o quarto. Foi fechá-la, para depois descer de volta ao jardim. Estava travada. Um tufão repentino jogou-o sobre a cama. – Meu Deus, como Estou Fraco! Levantou-se. Foi quando sentiu uma presença ausente. Não havia calor no quarto, mas ele podia sentir que não estava sozinho. Apenas as sombras deslizavam pelas paredes, disformes... Apenas sobras, e uma sensação que alguém o fazia companhia, no entanto ele não podia Vê-lo.

De certa forma Bernardo estava assustado. Temia padecer de alguma brincadeira de algum amigo fanfarrão. Antes fosse. A presença se fazia a cada segundo mais presente. Os pêlos do corpo de Bernardo estavam eriçados, e ele com passos apressado tentou fugir de seu próprio quarto. Mas foi impedido pela porta, que se trancou sozinha, numa batida violenta contra o marco. Ele tentou abri-la, mas a fechadura emperrou.

A sensação que alguém o acompanhava era mais nítida. Podia sentir o perfume amadeirado, e forte. Perfume de homem. Perfume barato, destes vendidos por consultoras de porta em porta. Sussurros lhe importunavam a mente... “Bernardo... Devolva-me... é meu... Bernardo... é meu... devolva-me...” As palavras que ates eram sussurros logo se tornaram uma voz clara e autoritária. Depois gritos. Sempre repetindo as mesmas palavras.

Sem poder crer em que seus próprios olhos produziam como imagem, Bernardo tropeçou, caindo de costas no chão. Bem na sua frente, fragmentos de luz permeavam o ambiente sem energia, e uma figura masculina se materializava bem na sua frente. Bernardo nunca acreditou em assombrações, mas na virada de ano, estava frente a uma. Era um homem pálido, de olhos fundos, de face quadrada, e que expunha em seu peito um enorme corte, deixando-lhe um grande vazio. – Devolva-me! Repetia mecanicamente o visitante inesperado.

Quando a contagem regressiva zerou, e as pessoas abraçavam-se sem notar a ausência do anfitrião, desejando-se mutuamente feliz ano novo, os fogos estouraram por toda cidade. Provavelmente isto impediu que os tenebrosos gritos de Bernardo não fossem ouvidos. No quarto, seu visitante queria algo que o anfitrião demorou a deduzir do que se tratava.

O fantasma curvou-se sobre o corpo de Bernardo e com mãos pútridas, mas com afiadas garras rasgaram o peito de Bernardo. – Isto me pertence! Disse a materialização fantasmagórica, arrancando das entranhas do morto um coração ainda pulsante. Um coração que não lhe pertencia. Quando a última bateria de foguetes estouros, Bernardo estava morto, e Jacson, finalmente partia para seu descanso eterno, levando algo que lhe fora roubado após a morte. Em suas mãos o coração pulsava menos, e talvez até estivesse morto, quando enterrou junto a sua lápide no cemitério São João Batista. Sua matéria estava recomposta num só corpo, e sua alma finalmente livre para viajar.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A criação dos Soldados Aho's [Do fantástico mundo de “Os Sete Guerreiros”]

As montanhas Tau fedem a enxofre. Do cume sai à fumaça fétida que inunda o sopé e os vales que a circundam. Nada lá cresce, a não ser é claro os espinhosos pinheiros. São árvores com mais de doze metros de altura, de tronco disforme, adornados de espinhos pontiagudos e doloridos. Nestas montanhas de cavernas sombrias, é o lar dos Aho’s...

O primeiro monstro nasceu do amor de um Deus, e de uma mulher. Este tipo de romance é uma incógnita, um coquetel de emoções e sentimentos, que na pior das hipóteses pode criar tais tipos de criatura. Cara de carneiro, presas afiadas, forma humana, e força incrível foi o resultado da mistura genética. Algo temível, sem dúvida.

Pois bem, assim nasceram as primeiras linhagens dos Aho’s. O terror dos caçadores, que só aventuravam-se nas montanhas pelo preço valioso dos pêlos de Gigamontes. Mas vez por outra um era devorado pelas criaturas das montanhas. O Aho’s eram canibais.

Até aí, claro apenas uma lenda, uma história que se perpetuava pelas montanhas Tau. Porém a guerra avançava na Terra Intermediária, e outro estranho ser peregrinava pela montanha. Não era homem. Um misto de macaco, e peixe. Não era mais belo que os Aho’s, mas muito mais poderoso. Detinha sob suas mãos a vida e a morte. Luison, era seu nome. E ele tinha uma missão. Levava consigo um grupo de onze homens, armados, e nada perigosos, pois temiam aos Aho’s como os vampiros ao alho.

- Sigam-me seus idiotas. Dizia o líder. Estão logo ali. Luison era um dos principais consultores do Rei Meriáth, a quem obedecia como um cão ao seu adestrador.

A noite descia sobre o grupo. As corujas e os morcegos saiam de suas tocas. Lobos uivavam no vale, e a silueta dos peregrinos contornava o lado norte da montanha. A lua lhes parecia próxima, e os homens não tinham mais resquícios de urina em suas bexigas desde que passaram a ouvir os berros “Ao Ao. Ao Ao”. O som era estridente, como uma taquara rachada. Só de ouvi-lo podiam sentir a dor das presas de marfim lhes arregaçando as carnes. Os Aho’s não eram piedosos.

O grupo sabia que estavam cada vez mais próximos. Podiam ouvir o estalido de seus pés nas folhas secas dos pinheiros. Andavam em círculo, rodeando o pequeno e amedrontado grupo. E o círculo fechava seu diâmetro a cada berro. Um dos homens não agüentou, e defecou em suas próprias calças.

Um bufo como mil touros fez com que outros cinco passassem pelo mesmo susto. Mas não assustou a Benitez Cavaco, soldado da infantaria de Meriáth. Ambicioso ele sabia que uma boa demonstração na montanha lhe poderia ser útil em suas intenções de progresso no exército. Esgueirando-se entre pedras, e a própria besta, ele lançou seu arpão com a rede de fibracita, tecido inviolável. O animal enredado na armadilha tombou, e gritava. “Ao Ao.”

O ser animalesco se contorcia como lombrigas tentando a fuga que já não lhe era possível. Luison se aproximou. – Tragam-me o caldeirão, e minha sacola de couro. Era um mestre de muitas sabedorias o fiel conselheiro de Meriáth, e quando a sacola abriu-se estranhos artefatos lhe foram arrancados. Ossos, punhais, e um pequeno saco com barro, e um jarro com água. – Atem-no. O animal foi preso num tronco de pinheiro. Continuava berrando.

Por ordem de Luison, os homens atearam fogo na fogueira, e sobre ela repousaram o grande caldeirão. Ele jogou dentro dele a água, e o barro, que multiplicou por mais de dez vezes. Quando as borbulhas da fervura iniciaram, jogou ingredientes estranhos aos homens que assistiam a cena. Com o punhal ele se dirigiu a besta acuada, que já cansava de berrar, mas que instantaneamente voltou a fazer quando o punhal abriu-lhe um rombo nas costas. Com as mãos Luison retirava tecidos da fera, e jogava-os no caldeirão. – Alep aigam coluta ad revats mosibras, ue so ceriro moc redop o idav e ad retom! Disse o bruxo num dialeto esquecido.

A fervura aumentava. O líquido engrossava como o caldo de uma sopa. E do caldeirão, para os olhares atônitos dos homens, um ser se recriava, lentamente até sair do fogo com suas próprias pernas. Uma cópia perfeita da besta presa, exceto pela falta de brancura nos olhos, e pela subserviência ao mestre das ciências ocultas que continuava a retirar tecidos de seu prisioneiro. – Tragam mais lenha seus abobalhados! Ainda faltam nove mil novecentos e noventa e nove!