quarta-feira, 7 de abril de 2010

A colheitadeira do demônio

Os mosquitos tamborilavam suas canções vampirescas. A sinfonia ecoava pelo quarto, mas não era o suficiente para abafar o ronco de Gilberto. Vez por outra ele sentia as picadas, tapeava o próprio rosto, absorto em seus sonhos. Maria, ao seu lado remexia-se de um lado ao outro da cama, emaranhando os lençóis. Seu sono estava como um pescador, jogando e tirando os anzóis da água. Toda vez, que o sono se ia, contemplava seu esposo, dormindo como um rei, em seu pequeno castelo...

O dia tinha sido cansativo para ele. Passara o dia em Cachoeira do Sul, negociando a máquina que tanto desejara para sua lavoura. Acompanhou a carreta até sua fazenda de quinhentos hectares em Pantano Grande, onde cultivava soja e arroz. Pagou a vista por seu desejo, e acompanhou com seus olhos a entrega, contemplando o investimento, e satisfazendo-se com o crescimento de sua vida.

Outra nem mesmo terras ele tinha. Arrendou um pouco aqui. Outro ali, e safra após safra começou a adquirir suas terras. E para aquele ano, em que dobrara o plantio, a colheitadeira lhe era uma necessidade. Por isso tanto zelo, capaz de esgotar suas forças naquele dia.

O casal era banhado pela luz prateada do luar. O vento quente de um verão marcante balançava as cortinas de linho. Os sete cães davam a tranqüilidade para manter as janelas abertas, um costume que Gilberto herdara de seu pai. Ele continuava a estapear os mosquitos, e sua mulher, mais uma vez sucumbia ao sono.

Mas o descanso de Maria era passageiro, e bastava o zunido de um único grilo que ela despertava. No entanto, aquele barulho era bem mais agudo e alto que os grilos e os mosquitos. Com as mãos ela sacolejou o peito desnudo de seu homem.

- Gilberto, acorda! Acorda homem! Dizia ela, tentando acordar o homem que girava de lado, e insistia em dormir. Acorda homem! Vamos...
- O que foi mulher? Disse ainda em estado sonâmbulo.
- Acho que tem ladrão.

Ele esfregou os olhos e cutucou as orelhas com o dedo grosso, retirando toda a cera depositada. Os cães ladravam alucinadamente. Sete cães ladrando são mais barulhentos que as trombetas do inferno. E eles latiam cada vez mais. Um ronco ecoava em sentido crescente, e Gilberto logo reconheceu: - Minha colheitadeira.

Em sua mente flashes daquela incrível e imponente máquina inflavam sua coragem. – Nenhum safado vai roubar minha colheitadeira! Bradou.

Gilberto planejara cinco anos antes a aquisição da máquina. Tudo isso quando tinha apenas três quintos de sua propriedade. Quando viu seu sonho realizar materializado naquela monstruosa máquina de colheita, começou a nutrir um amor e um apego pelo aço. Só ele, e ninguém mais sabiam cada vitória e cada derrota que tivera ao longo de sua vida.

Sequer vestiu suas bermudas. Jogou uma camiseta sobre o corpo e saiu de cuecas e meias até a sala onde guardava o rifle e a munição.

- Fica dentro de casa, mulher! E pegue este revólver... Se for preciso use.
- O que tu vai fazer? Tome cuidado.
- Nenhum safado entra na minha propriedade e me rouba.
- Gilberto, eles podem ser um bando... Ouvi que é assim que eles atacam as fazendas.
- Pois vão se dar mal, aqui... Tem chumbo pra todo mundo.

Ele abriu a porta, e saiu alumiando o pátio com uma lanterna na mão esquerda, e a arma na outra. O galpão estava uns duzentos metros dali. Iluminou cada pedaço, e não viu movimentação alguma, a não ser a colheitadeira saindo lentamente do galpão.

- Quem está aí? Repetiu a pergunta umas cinco vezes sem ser respondido. Focou a lanterna na cabine, mas não dava para ver nada em seu interior por causa dos vidros escuros. Os cães rodeavam-na, latindo ferozmente. A colheitadeira girou, e suas luzes focaram os olhos de Gilberto, cegando-o por instantes. Depois ela acelerou, e partiu com rapidez pás a lavoura que ficava próxima. Os cães ganiram como que temessem p lobo-guará, e se amontoaram nas pernas de seu dono.

Atônito Gilberto caminhou até margens da lavoura, e passou a assistir a cena insólita. A máquina começou a colher, como se tivesse vontade própria. Primeiro andou em círculo, e depois em linhas retas. De repente ela parou no meio da lavoura. Seu motor abrandou. Ela girou na direção de Gilberto.

Como dois caubóis do velho oeste, ambos se encaravam. Parados um de frente para o outro, a lua cheia iluminava suas siluetas. O motor da máquina, como numa provocação voltou a gritar. Os faroletes se ligaram, e ela acelerou. A espingarda atirou uma, duas vezes... A máquina estava cada segundo mais próxima. As mãos do agricultor tremiam. O cano da arma se multiplicava por dez, e ele não conseguia encontrar o centro... A máquina estava cada vez mais perto... Mais perto...

A colheitadeira avançou sobre Gilberto e seus cães. Os ferros começaram a girar, e ela os colheu quando o homem ainda tentava recarregar a espingarda. Os dentes de aço afiados trucidavam suas carnes fazendo o sangue jorrar em sua lataria amarela. Seu motor silenciou após o último ganido dos cães... Voltou-se a ouvir a sinfonia dos mosquitos e dos grilos

O sol raiava quando as sirenes luminosas cortavam as estradas de chão. A patrulha rural tinha sido chamada por Maria, antes mesmo do destino fatal de seu esposo. O sargento desceu da viatura e encontrou uma senhora pálida como um vampiro. Não movia um único músculo, como se fosse uma estátua. A boca entreaberta murmurava palavras indecifráveis.

- Sargento! Acho que esta porta ta trancada por dentro. Disse o soldado Aníbal.
- Arrombe!
Um pontapé foi suficiente. O soldado deu um passo para trás, e levou as mãos no nariz. – Nossa que fedor de chifre queimado! Exclamou. Nas margens da lavoura outro soldado empoleirado numa velha figueira chamou mais uma vez a atenção do sargento. – Ei! Dá uma olhada nisto daqui sargento.

O negro de quase dois metros de altura se pendurou entre os galhos, e de cima observou a estranha figura desenhada na lavoura. Um círculo, e no seu interior dois triângulos invertidos formavam uma estrela.

Enquanto os dois observavam a figura e torciam para que a imprensa não descobrisse o fato, o soldado Aníbal grudou seus ouvidos nos lábios da senhora que continuava murmurando. “Demônio... Demônio... Demônio...” Como uma vitrola arranhada ela dizia repetidamente a palavra que fazia o coração de Anibal gelar, e seus lábios beijar o crucifixo que o acompanhava no pescoço.

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