sexta-feira, 18 de junho de 2010

O ataque do morcego

Nunca vá morar numa fazenda se não estiver disposto a passar por alguns sustos, e enfrentar uma dezena de medos. Lugares distantes, e de paisagem envelhecida, onde as fronteiras estão distantes, e o socorro sempre dá a impressão que não irá chegar. Christina aprendeu tudo isso da pior maneira... Tinha dezesseis anos. Seus cabelos escorriam por trás dos ombros, e esvoaçavam ao movimento do vento gélido de inverno. Seus olhos azulados eram como um fragmento de cristal cintilante, e seus lábios rubros e carnudos provocavam os desejos mais sórdidos nos colegas de aula. Seu corpo desenhado a mão vestia um justo e impecável jeans, uma jaqueta marrom de couro para esquentar seu dorso, e inapropriados tênis brancos para um dia barrento de chuvisco insistente.

Era um dia especialmente cinzento, com nuvens carregadas de água e frio que pintavam o celeste num manto de chumbo donde o sol atrevia a aparecer apenas em pequenas nesgas de luz. E com o avançar das horas, as sombras tomavam toda a paisagem, e quando ela desembarcou do transporte escolar, o sol descia o horizonte para esconder-se por detrás dos matos de eucaliptos a dezenas de quilômetros dali.

Como fazia todo dia, teria de caminhar até a sede da fazenda, onde seus pais foram morar, contra sua vontade e de seus outros irmãos. Eram dois quilômetros até a casa, na qual aproveitava para pensar em seus amores, e ouvir seu Ipod.

Dispersa, envolvida pela música e tantos outros pensamentos Christina não brindava seus olhos com a pintura criada bem na sua frente. As Saliências do campo coberto por um trigal que dançava com o vento, cortado pela sinuosidade da estrada de terra formavam uma imagem merecedora de nobre moldura. Numa das curvas á direita, bem na metade do caminho, uma frondosa secular figueira quebrava a lisura do terreno com seus galhos espaçosos, e na baixada da estrada, á esquerda de um açude a casa, onde moravam, cuja chaminé expelia a fumaça do fogão de lenha.

Nesta altura o sol havia sido tragado pelo horizonte como bola oito sugada pela caçapa de sinuca, pincelando de sombras todo o vale, deixando apenas a silueta da velha figueira revelada pelos últimos traços de luminosidade. Nos pensamentos da jovem havia espaço apenas para Jonas, o menino de sorriso largo, dentes extremamente brancos e hálito de hortelã que ela beijara à tarde.

A distração de quem se assegurava no ermo e na solidão do campo, onde o vizinho mais próximo estava a trinta minutos de caminhada foi sua perdição. Sem poder imaginar qualquer perigo naquela terra isolada, o alvoroço e grasnar dos pássaros no coração da copa da árvore passou despercebido. Assim como o salto no vazio da imensa criatura pendurada em seus galhos, e o iniciar da batida de suas asas de quiróptero.

Christina sentiu o perigo apenas quando o ar tornou-se mais gélido e próximo por causa do ar forçados pelo batimento das asas do grande morcego. Quando ela olhou por sobre seu ombro, a criatura voava com gula em sua direção. Seus olhos se tomaram de espanto, e os pêlos de seu corpo se eriçaram de medo arrepiando cada parte de seu corpo, separando suas carnes de suas espinhas. A única coisa que restou foi correr.

Os cadernos carregados contra o peito macio foram jogados ao chão. Seus pés imploravam por asas, e ela sentia a criatura cada instante mais próxima. Não era uma criatura comum. Não era apenas um morcego, mas sim o tenebroso híbrido com corpo de homem, coberto de pêlos, pernas humanas, braços humanos, mas cuja face miscigenada não podia afirmar ser um homem. As asas enormes e negras nasciam em suas costas e batiam contra o ar criando um característico barulho intimidador.

Ela olhava para frente, e a desesperança lhe invadia o coração, pelo cálculo cruel que lhe dizia que o monstro estava mais próximo que a segurança de sua casa. Até que o inadiável aconteceu, e como um goleiro, a criatura jogou-se contra Christina como se esta fosse uma bola de futebol, e os dois se embolaram rolando no chão, até frearem contra uma pequena moita.

O corpo do perseguidor era frio como os mortos, e suas mãos ásperas como uma lixa percorriam seu corpo juvenil, desnudando-a por inteiro até revelar suas mais formosas curvas. O inverno e o medo deixavam sua pele rija, enquanto a língua do monstro deslizou por cada centímetro de sua epiderme sorvendo seu sal emanado de seus tremores mais delirantes. Sem dó ou remorso, o híbrido a possuiu, e como forma de demarcar território e explicitar a outros animais que possuíra aquela tenra fêmea, o estranho morcego abriu sua boca diminuta de onde saltava um par de presas e cravou-as em seu seio esquerdo, deixando dois pequenos orifícios como lembranças. Saiu em revoada quando ela ainda estava desmaiada em trêmula ao relento da noite.

– E foi isto que aconteceu pai. Disse ela agasalhada por um cobertor, sentada numa rústica poltrona ao lado de uma lareira, na tentativa de aquecer seu corpo debilitado, sendo observada por um círculo familiar que a contemplava incrédulos. – Nunca vi... Vi... Ela tentou continuar, mas não conseguia articular mais nenhuma sílaba, deixando lágrimas escorrerem.
– Ora menina. Iniciou o pai num tom de reprimenda. – Eu, com o coração apertado, acalentando minha raiva contra quem te fez isto, e você me conta uma história estapafúrdia destas, e quer que eu acredite... Tá pensando porque sou velho sou burro... Vamos, Conte-me toda a verdade, enquanto tenho paciência. Bradou Josimar.
– Mas pai, é... A verdade...

Josimar era um homem rústico que sempre primou pela verdade. E quando encontrou sua filha jogada ao frio, nua, com arranhões pelo corpo, a primeira coisa que fez foi caçar pelas proximidades um provável agressor. Sem nada encontrar, levou-a para casa, até reanimá-la. Mas ouvir sua história lhe soou como acinte, e por mais homem do campo que fosse acostumado com as mais variadas histórias, não podia crer na que tinha ouvido da boca trêmula de sua filha, embora ela lhe parecesse bem convincente.

Ele tinha em mãos um surrado cinto, que chicoteou a primeira vez nas nádegas de sua filha, ecoando um som dolorido. – Vamos menina, eu quero a verdade... A verdade...

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