terça-feira, 31 de julho de 2007

HORROR SILENCIOSO

Era uma quinta-feira. Dum mês e dia, que não se faz necessário falar. Saía do trabalho pela volta das seis quando o ataque se deu. Uma aguda dor no peito, e senti bambear as pernas tendo o chão como ultimo obstáculo. Foi uma queda dolorida.

A rua naquela hora estava movimentava, com intensa aglomeração de pessoas. Não demorou, para que um extenso círculo se criasse em minha volta. Tinham olhos curiosos para saber o que acontecia com aquele homem, forte, alto e aparentemente saudável. A sensação era terrível não sentia um único tecido de meu corpo que fosse, no entanto meus olhos, inertes, assistiam a tudo o que acontecia. Um ou outro tentando me reanimar, e a correria, o som ausente de suas bocas abertas, seus gestos. A chegada da ambulância, a maca me conduzindo, via tudo, era a única coisa que me restava nada mais.

Dentro da viatura tentava inutilmente abrir minha boca, falar que estava vivo. Que ainda via o mundo a minha volta. Em vão, ficava só a angustia da voz ausente e a intensa vontade de gritar que ainda havia vida em meu corpo. Se dele algum movimento fosse possível talvez se avistasse lágrimas escorrendo pela minha face.

Sem poder me mover, assistia a correria dos médicos pelo corredor do hospital, suas paredes brancas, e rostos angustiados sobre meu corpo, como me dizendo que não mais havia volta. Entramos numa sala, me jogaram sobre a cama, e depois de quatro tentativas de reanimação sumiram por algum tempo. Quando retornaram, traziam junto minha esposa, mulher que por mais de vinte anos, a cada dia aprendia a lhe amar ainda mais. Companheira, amiga, era meu porto seguro. Sem qualquer possibilidade de lhe falar, naquela hora supliquei pela dádiva de poder gritar, e não ver seus olhos se turvarem pelo vermelho da dor, e as lágrimas tomarem seu rosto meigo. O médico tentou consola-la. Senti ciúme, e raiva pela inércia que me tomava. Antes de sair ele fez um sinal negativo, me cobriram com um tecido, que só foi retirado com a chegada de um homem, de rosto tétrico, que aparentava felicidade com a situação.

Fui posto num caixão. Sim, para todos, eu havia morrido. Não sabia que ainda me restava uma fina ligação com a vida. Eu a via, mas não podia tocá-la, senti-la. Sofria o maior horror, silencioso e cruel. Novamente, a dor me corroia, e suplicava por lágrimas que escorressem de minha face, e avisasse que ainda restava um solstício de vida. Caiu a noite, e me levaram a capela, homem devoto e fiel o padre, suponho, fizera questão de velar meu corpo na igreja. Os amigos não tardaram a chegar, eram muitos, e em seus rostos demonstravam sofrimento pela perda. Até os parentes mais distantes se fizeram presente. Muitos havia anos que não os via.

No entanto, se pudesse ter atendido apenas um desejo, seria não ver os rostos das crianças. Pedi para morrer definitivamente antes que eles ali chegassem, ou torcia para que minha mulher não os levasse até lá. Tarefa difícil para quem sempre dedicou muito carinho a eles. Quando se aproximaram de meu corpo, suas faces exibiam um choro incontido, e por instantes cheguei a pensar ter ouvido o som de suas vozes. Em toda a minha vida, e naquela fatídica quase morte foi o momento mais doloroso de todos que já pássara, O mais velho tentando se agarrar ao corpo para que dali eu não partisse, a caçula de hábito retraído apenas deixava escorrer a lágrima incessante. Meus pensamentos e minha mente faziam forças tentando a derradeira chance de mostrar-lhes que ainda restava vida. Minha cabeça doía, meu coração calado, chorava profundo.

Amanheceu, e puseram o tampo do caixão. Restrita minha visão observava pelo pequeno encaixe de vidro. Levou uns trinta minutos e vi a claridade sendo obstruída. Não tinha dúvidas, estavam me enterrando. Tentei gritar pela ultima vez, até que um tampo de cimento me jogara ao breu. Perguntava-me até quando perduraria aquela consciência angustiante.

Não sei por quanto tempo, horas, ou dias se passaram naquele estado. Para acalmar-me puxava minhas memórias, os momentos felizes, e as conquistas dos meus trinta e poucos anos. Durou até o momento que senti uma dormência em meus braços, quando puxei o ar rarefeito, e senti meus pulmões vivos e ofegantes. No silêncio do túmulo só as batidas do meu coração podiam ser ouvidas. Meus gritos num primeiro ato desesperado não sairiam de dentro da caixa de carvalho que estava embalado. Soquei incansavelmente tentando vencer a madeira. A cada minuto o ar se extinguia, tossia muito. Minhas mãos doíam, mas não desistiria até sair dali e contar aos que amava que estava vivo. O sangue dos cortes provocados pelas felpas e a falta de força me dominavam junto com o ar que se esvaía. Minha visão, nítida até ali, foi turvando, os sons sumindo, meu corpo estava cansado por uma batalha impossível. Demorou pouco para que só o negro silêncio, e as trevas da morte me sugassem definitivamente.

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