quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

UMA ALMA PERDIDA

Ter o corpo colhido pela carreta carregada de toras de madeira, e sentir suas carnes, e seus ossos serem esmigalhados pelo metal do veículo eram dos problemas os menores que João Antônio vivia naquele momento. Sua saga aterrorizante começara durante a discussão com sua esposa. Enfurecido resolveu sair de casa e ir ao boteco tomar umas de cana para afogar suas mágoas. Seu primeiro erro foi desistir desta idéia, pois se talvez estivesse embriagado nada tivesse lhe ocorrido, pois de todos os santos o mais poderoso é Santo Onofre, pois jamais vi gente de sorte como os “bebuns”. Só mesmo o auxilio de um Santo poderia explicar certas feitas, e, inclusive o próprio João Antônio sabia disto. No entanto, na metade do caminho ele resolveu voltar, e pedir perdão. Logo ele que jamais fizera isto. Quando atravessou a rodovia, foi então atropelado pela carreta.
A dor que sentiu foi rápida. Viu pouca coisa, pois logo seus pedaços encheram o radiador, e outras partes do caminhão que freou bruscamente, deixando o asfalto com a névoa dos pneus sendo queimados pela ação dos freios. Um único grito foi o que se ouviu de João. Nada mais. Quando finalmente conseguiu para o caminhão, seu motorista desceu num misto de pavor, e de ódio ao homem que se atravessara em sua frente. – Louco!Louco! Louco! Era a única palavra que vinha de sua boca.
Não demorou a uma multidão se aglomerava. Algumas mulheres, de estômagos mais sensíveis, regurgitavam seu lanche da tarde, e até mesmo seu almoço. Uma mãe correu a tapar o olho de seu menino que estava com os olhos vidrados no corpo desfigurado, e do sangue que corria pelas bordas da rodovia. Sentindo-se estranho, um ser se aproximou para ver o que acontecia. Era ninguém menos que o próprio defunto, que só percebeu o fato após dezenas de tentativas de conversar com alguém, sem ter de volta alguma resposta. Seu maior choque se deu ao ver seu próprio rosto caído para baixo do barranco. As feições da morte daquela cabeça desprendida do restante do corpo era algo de mórbido, que o recente espírito tentava em vão segurá-la. João Antônio não passava de partículas no ar. Sua presença física encontrava-se inerte. Gritou com uma dor tão intensa, que não duvido que almas mais sensíveis, tivessem escutado seu lamento.
Mas como disse no princípio, este de seus problemas era o menor de todos. Antes mesmo que o carro negro da funerária chegasse para carregar sua carga física, seu espírito foi envolto por figuras humanóides, que não passavam de sombras. Ele sentiu pela primeira vez lhe tocarem. Eram as sombras que puxavam seu plano espiritual para dentro de um túnel negro que se abria a sua frente. Ele pressentia que não era coisa boa o que se apresentava, mas não consegui resistir ao seqüestro, e logo ele estava dentro de um cubo completamente negro. Não via nada, e apenas caminha em direção ao ermo. Ao modo que avançava o calor se tornava mais intenso, e o caminho mais estreito. João Antônio sentia-se como um claustrofóbico preso em um elevador.
Ele andou muito, e só não desmaiou, pois já não era mais humano. Se ainda estivesse vivo jamais suportaria tal caloria que tinha naquele lugar, ou conseguiria respirar com o fedor que dominava o ambiente negro, e sem destino. Tinha um odor característico. Mas ele não conseguia lembrar. Aliás, não conseguia pensar em mais nada que não fosse sair daquele lugar. Então, quando ele menos esperava o cubo se desfez, e ele estava num salão amplo e circular. Ele estava planando sobre uma ilhota de terra envolta por um rio de lava vulcânica, abastecido pelas dezenas de cachoeiras alaranjadas e ferventes que o circundavam. De uma destas quedas formou-se a imagem de um rosto esguio e de olhos voltados para baixo. Eram olhos finos e diabólicos. Bem, isto é o mínimo que se pode dizer do demônio. Era o próprio que fitava aquela alma recente. – Sua alma me pertence. Disse a figura de fogo. – Você deve ter se enganado, eu não devia estar aqui. Retrucou João Antônio. – É o que todos dizem. Rebateu o demônio. João Antônio parou, e não falou mais nada. Esperava por uma interferência divina, ou talvez por uma palavra que convencesse o demônio a libertá-lo.
De fato não era para João Antônio ter ido para no inferno, mas uma vez estando lá era praticamente impossível de sair. Ele continuava calado, e começava a entender o tamanho de seus problemas. O caixão em que repousava seu corpo físico era sem dúvida muito mais confortável que o lugar onde sua alma começava a sofrer com os castigos da besta.

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