sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

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Ninguém sabe ao certo porque a música desperta sentimentos. Poucos estudos sobre isto foram realizados, por talvez, não ser interessante descobrir toda a verdade. Mas Jeremias sabia muito bem o poder que tinha suas composições. Ele as criava soturnamente, na madrugada, um vulto errante naquele pequeno cubículo bagunçado e sombrio. A luz era parca, e sem dinheiro para pagar a luz, eram apenas as sete velas a queimar que lhe davam a luz suficiente. Seus olhos esbugalhados pelo sono a ser vencido miravam o copo de café, quente e amargo. Tinha pouco tempo para terminar seu trabalho. O dinheiro também findava.

Mais sombrio que o próprio apartamento alugado há seis meses, era Jeremias. Seu rosto, de expressões profundas, não escondia as amarguras de uma vida. Meio século de fracassos acumulados e uma raiva pela humanidade, e por seus pares. Nenhum disco gravado, o ultimo show fizera uns dois anos atrás, num bordel onde a mulher mais bela pesava mais de três dígitos. O sucesso que sonhara jamais se aproximou, e dele fugia como o diabo da cruz restando-lhe as migalhas das esmolas ganhas pelos acordes tocados no centro da cidade. Não davam sequer para o pão de cada dia. Sua escolha era voraz, mas escolhia sempre pela cachaça, e pelo ódio voraz que nutria por seus pares. Mas Jeremias entendia da música.

Não me atrevo dizer que ele era um grande tenor, ou o maior de todos os compositores. Mas Jeremias entre muitos, sabia como poucos o poder das notas, dos acordes... O som que acalmava um coração sofrido, uma canção que explodia dois amantes num frenesi de paixão, as notas fúnebres de um cortejo... Jeremias sabia que cada som era capaz de provocar uma sensação, fosse ela boa, ou ruim.

Por isso tinha naquele seu trabalho, o último. Depois dele nenhum outro. As últimas onze músicas de sua vida. Sabia que depois de pronto, o disco a ser gravado com seus últimos trocados entraria para a história. Todos conheceriam seu talento e o quanto Jeremias sabia compor. Era alvorada, dum dia que nascia vermelho ao horizonte quando ele ainda num misto de zumbi com gente saiu para ira até a gravadora que faria seu “demo”. Um sorriso jocoso se instalou e seu rosto de olhar profundo e gélido. “Demo”. Pensou. É justamente isto que representa esta “porcaria”. Concluía seus pensamentos.

Uma semana depois o carteiro chegou à casa de Jeremias. Este aguardava sentado há exatos sete dias, sem sair da poltrona, nem mesmo para banhar-se. Apenas as moscas o acompanhavam. Ele recebeu a encomenda e partiu. Bateu na porta de várias rádios, e não é preciso dizer que quase todos lhe negaram a oportunidade de rodar sua demonstração. Também não podemos criticá-los, só os que viram Jeremias tinham condições para discernir o farrapo humano que se tornara aquele homem. Porém, sempre, sempre haverá alguém disposto a ajudar um pobre coitado. Foi na rádio noventa e cinco ponto um que seus diretores tiveram a infeliz idéia, e se comprometeram a tocar a música de Jeremias. – Ouça depois da meia noite, senhor, lhe prometo que ela será tocada. Disse-lhe o homem que o atendeu. Por sorte não era horário de grande audiência, mesmo assim...

André Tavares era um dos ouvintes atento a programação da madrugada. – Amigos da Rádio Noventa e Cinco Ponto Um, vamos tocar agora o som de um amigo. Jeremias, aquele do centro e do metrô... Pois é Jeremias alcançou seu grande sonho, e aqui está seu primeiro CD. Vamos ouvir o que ele nos apresenta neste trabalho... O Técnico deu o play, e um som melodioso e extremamente triste ecoou pelas ondas sonoras do rádio. A música penetrava no corpo de André que via as imagens de todas as suas tristezas se formava bem a sua frente. A música era longa, dolorosa. Sua garganta ficou embargada, seus olhos despejavam lágrimas, e uma vontade irretratável se apoderou de seus sentimentos. Antes que o rádio tocasse a ultima nota André apertava o gatilho de um revólver que mantinha em casa. O tiro estourou sua cabeça. Foi apenas um, entre as dezenas que ouviam a rádio naquele instante. Outros se enforcaram, enquanto uns buscaram a ponte mais próxima, o a janela de seus apartamentos. Jeremias entendia de música, e do poder dela sobre as pessoas. Jeremias também entendia de vingança.


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