terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ADEUS BOEMIA

Havia acordado completamente nu. Do mesmo modo como vira ao mundo quarenta anos atrás. Bem, não necessariamente igual, já que naquela oportunidade meu corpo não apresentava tantas escoriações e hematomas. Completamente dolorido, é o resumo do meu estado físico naquela manhã. Os ossos pareciam ter sido removidos dentro de mim, e uma ânsia fazia-me vomitar, tamanho amargo, e gosto de sangue em minha boca. Meus lábios estavam rubros, manchados pelo sangue de alguma pancada. Sonolento, pude perceber meu engano, pois já não era manhã, pois o relógio pendurado na lascada parede indicava quinze pras quatro. Como pudera dormir tanto, perguntei-me.

O calor intenso de março penetrava entre as quatro paredes, ganhando intensidade pelo reflexo dos imundos vidros da única janela do quarto. Por ela os raios do dia esgueiravam-se entre suas brechas até virem queimar minha pele mais sensível que o habitual. Enxaqueca era outro ingrediente a formar minha pessoa naquele dia, alem da total inconsciência do que acontecera nos últimos dias. Os lençóis revirados estavam salpicados de sangue, provavelmente das dezenas de ferimento que eu possuía. Precisava me levantar e criar forças para me reerguer, e chegar ao minúsculo banheiro. Uma barata e outra desfilavam, observando atentamente ao lixo ambulante que me tornara.

Antes de reunir as forças necessárias, tentei colocar meu frágil cérebro pra funcionar. Quem sabe resgatar o acontecido, as razões para tantas escoriações. Mas nenhuma imagem se formava, talvez pela dor, tanto externa, quanto interna, já que meu corpo se retorcia em cólicas. Sem dúvidas, a primeira suspeita pus sobre a cachaça. Sempre ela, que casada com meus abusos eram um casal tremendamente explosivo, e o resultado de tal parceria sempre era uma incógnita. Não seria a primeira vez que teria abusado da bebida, e levado uma surra, porém das outras vezes sempre conseguia lembrar-me dos fatos, além é claro, de antes nunca ter sido assim, tão dolorido.

Lentamente arrastei meus pés sob o piso disforme e gelado. Os sons vindos da rua ecoavam em minha mente, tomando proporções gigantescas. Eram buzinas, passos, e conversas. O centro da capital era assim mesmo, e nada podia fazer, já que a incompetência não me permitiu um lar melhor. Com aquela orquestra caótica perturbando-me fui até a pia. Gargarejei um pouco d’água, e ao cuspi-lo, um líquido avermelhado invadiu a pureza do branco. Eram os resquícios de sangue. Escovei os dentes, e me lembrei que poderia estar com fome, porém sentia-me estranhamente saciado, e aqui peço o perdão de quem lê, mas não encontrei nada sutil, para referir a minha saciedade, que não fosse falar do arroto, aquele estrondoso, trazendo os gazes do peito elevando até a saída da boca. Aquele arroto era sinal da minha saciedade, da falta de fome, que me permitiria talvez passar dias sem me alimentar. De certa forma era estranho aquele sintoma, já que as parcelas do seguro desemprego por dias já haviam acabado, e não conseguia me lembrar do ultimo prato decente que havia comido.

Liguei o chuveiro. Tomei o choque habitual proporcionado por velhos registros. Aquilo, e a água gelada me ajudaram a recompor minhas forças. Vesti a única calça que havia no guarda roupas, e fui ler os classificados dos jornais. Infelizmente nenhum aceitava entrega de currículos depois das cinco da tarde. O jeito era aguardar pela nova manhã. Antes que ela chegasse, saía pra rua, até um bar. Lá os poucos centavos que me restava, pagava a primeira dose, pois as demais vinham dos colegas e amigos. Gosto de conversar, talvez por isso enchia-me de prazer ficar até a madrugada irromper, jogando conversa fora, falando de mulheres e futebol. Quando o ultimo saía, ia também, pois as moedas que sobraram alimentariam no mínimo mais uma noitada.

O caminho de volta era tranqüilo, mesmo cambaleando as pernas, pois as pessoas somem do centro à noite. Sobram algumas poucas prostitutas, e os marginais e gigolôs que as cuidam, ou aos seus clientes. Quanto a mim, não me incomodavam, pois quem iria querer assaltar alguém sem grana.

Naquela noite percebi as ruas mais vazias que o habitual. Talvez fosse o menor grau de embriagues, já que não via dobrado. O silêncio imperava. Olhei para o alto e as luzes ofuscavam a noite. Lembrei-me do interior onde crescera. Lá se via as estrelas, e a lua era maior que um pontinho luminoso no céu. Só a percebi porque estava cheia. Foi a ultima lembrança daquela noite, pois no dia seguinte acordei nu novamente. Atordoado, busquei tomar forças para acordar. O cansaço era ainda maior que no dia anterior, e o meu quarto continha um aspecto um tanto macabro, pois jazia sobre a cama, encravado em minha boca um pedaço de braço humano, que sinceramente não sei d’onde surgiu. Não nego que levei um susto, mas preferi guardar tal segredo, pois nunca me dei bem com polícia.

Limpar o apartamento me deu trabalho, mas não menor que o de ensacar aquele braço de carnes remoídas e ensangüentado e jogá-lo numa lixeira qualquer. Naquele dia parei de beber e a sair a noite, mesmo assim vez por outra acordo nu, e com a sinceridade que me é característica tenho medo do que possa aparecer sobre minha cama.

Nenhum comentário:

Postar um comentário