segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Contatos imediatos de primeiríssimo grau.

O medo dificilmente me acompanha. Mas naquela noite... A lua tava cheia, e o céu aberto qual sorriso de china pra índio de guaiaca cheia. Ainda gozava da plenitude e alvoroço dos vinte anos. Eram meados de setembro. Enquanto a maioria do rancho havia ido se refestelar no CTG para as comemorações da semana farroupilha, decidi ficar em casa.

Fazia tempo que não saía para uma caçada. Sou mui loco por Tatu frito na panela de ferro. Embainhei a faca no cinturão, alcei a armadilha no lombo, e na mão direita peguei a pá. Assoviei duas vezes, e logo apareceram meus dois cuscos: Rambo, e Jagunço. Meus dois grandes companheiros, e testemunhas do que vi naquela noite.

A caçada de Tatu tem lá seus segredos. Ás vezes se caminhava uma noite inteira sem se ver uma única toca. O caçador tem que saber onde o bicho se esconde. Nisto sem modéstia alguma, eu era bom. Meu destino eram uns matos, que ficavam na costa do arroio Passo Fundo. Coisa de seis ou sete quilômetros de casa. Como a caminhada não era pouca, lá pelas dez saí com meus apetrechos, e com meus cuscos.

O Rambo era um pastor ovelheiro de primeira linha. De pelagem preta e branca muito espessa. Não era um exímio caçador, mas em compensação era um ótimo companheiro. Certa feita, no reflexo, e na pura coragem, destroçou uma cruzeiro, que tava de bote armado a fim de me arrancar os garrões. Já o jagunço era um pouco diferente. Era um animal bem feio, além de ser guaipeca, vira – latas como se diz. Pra piorar ficou caolho com um unhaço de Tamanduá, e manco da pata de trás por causa da chifrada dum touro. Mas sua feiúra e esquisitice era compensada pelo dom da caça. Seu faro não deixava escapar nada. Aí se vai mais outro segredo de caçador: o cachorro.

Fui descendo pelos fundos do campo, pela estradinha que levava até a bica. Confesso que a entrada da bica nunca me fora simpática. Era um túnel de árvores nativas, que nem mesmos os raios de luar ousavam penetrar. Mesmo desconfiado entrei no mato, parei, tomei um pouco de água da bica – Não me importava qual hora ou ocasião, mas sempre que passava pela bica, parava pra tomar água – que era uma coisa sem igual. Podia ser daqueles dias de se fritar ovo na terra, que estava sempre geladinha.

Graças à bota de borracha, o barro encharcado não incomodava meus pés. Desço um barranco, subo outro, tão logo atravesso a sanga por donde escorria um fino fio d’água. Passo pelo arame, que farpado, teima em se grudar em minha roupa, e estou no campo do polaco. Era um descampado de grama bem verdinha, local que o gado se alimentava durante o dia. Paro para dar uma tirada “de água do joelho”, e sigo em frente. Mais uns quinhentos metros para chegar ao mato de eucalipto do Seu Oliveira.

Se há coisa que me deixa sestroso – apesar da coragem – é atravessar um mato de eucaliptos. Eu tinha uns novecentos metros pra me livrar. Olhava pros lados, pra cima... Buscava com o olhar a luz tímida da lua. Por momentos ficava inerte ouvindo as folhas secas sendo tocadas pela brisa, formando o som de passos. Parecia estar o mato povoado de milhares de seres, que acompanhavam meu caminhar.

Quando a saída se encontrava um pouco mais próxima, e o coração pulsava mais calmo, então se iniciou minha estranha experiência. Sem mais, nem menos, meus cuscos foram se enrolando em minhas pernas como se quisessem recuar. Ganiam de medo. Pensei em se tratar de lobo guará. Porém só tive tempo ouvir aquele barulho, e ver a chispa de clarão cruzar por sobre o mato a ponto de tocar as copas das árvores provocando uma chuva de folhas. Arriei as pernas por um instante.

Mas maior que o medo, é a curiosidade. Mesmo com as pernas duvidosas resolvi investigar o que havia acontecido. Saí do mato e cheguei a outro descampado, só que com umas capoeiras mais densas. Olhei pros quatro pontos cardeais, e nada. Os cachorros permaneciam inquietos, e voltei a buscar por sei lá o quê. Fixei então os olhos na direção das minas de caulim do Zé Antônio, percebendo uma claridade além do normal, e de cor rubra.

Não ficava muito longe donde estava, o caminho é que era complicado. Com paciência e muita calma fui me aproximando. Chegando ao local vi aquela coisa, o troço mais esquisito que eu já vi em toda minha vida. Escondido no buraco da mina uma estranha máquina planava sobre o chão.

Não sei se minha explicação é de fácil compreensão, mas vou tentar. A olho nu, deduzi que tinha mais ou menos uns quinze metros de comprimento. Pareciam duas frigideiras, uma sobre a outra. O rabo era a maior parte, donde saíam umas faíscas de fogo amarelado. O bojo talvez fosse a cabine, e era circundado por luzes vermelhas que acendiam e apagavam em ritmo frenético. Juro por Deus, que a primeira coisa que me veio a cabeça foi a lembrança do bordel da Tia Almerinda. Na cidade nenhum outro era iluminado como ele.

Como disse sou um índio curioso demais. Fui me aprochegando, descendo o barranco da mina. Por via das dúvidas desembainhei minha faca por qualquer desventura. Fui passo a passo. Meu companheiro Rambo perdeu a coragem e ficou se lamuriando lá trás. Mas o jagunço não frouxou a rapadura e seguiu comigo, na empreitada corajosa.

Pé por pé ia chegando perto do troço. Tinha um barulho de motor que era bem sutil aos meus ouvidos. De repente o jagunço se enveredou na direção de umas pedras a minha direita. Quando pus meus olhos para donde ele se ia, vi uma coisa terrível e feia. Acocorado atrás das pedras – creio que fazendo necessidade – vi uma figura humanóide, tinha não mais que um metro e vinte calculei. De coloração esverdeada, sua cabeça mais parecia uma abóbora de tão grande e desproporcional, e seus olhos arregalados e grandes pareciam faróis de lambreta.

Flagrado naquela situação delicada o ser estranho também se assustou dando um berro que se pode ouvir a quilômetros, quase me deixando surdo. Até hoje meu ouvido esquerdo não escuta bem. Quem não se assustou foi o jagunço que saiu em disparada atrás do “bicho”. Ele nunca falhou, me trazia a caça em mãos. O jagunço era o meu grande segredo.

Atacado pelo meu cão o “estranho” não teve tempo de terminar o que fazia. Saiu correndo em fuga pra sua nave. Mas o jagunço era cachorro ligeiro, e já estava nos calcanhares do “bicho”. Só que o fugitivo também era rápido e com um salto seco que foi seguido pelo meu cusco entraram na nave. Pasmo com o a cena, vi a porta da nave se fechar com os dois lá dentro, e num piscar tão ligeiro quanto raio, a nave sumiu céu a fora.

Ainda hoje quando conto essa história muitos não acreditam, e riem da tristeza que me assola desde então. Nunca mais vi o jagunço, sem dúvida o melhor cão de caça a passar por estas bandas. Depois dele nunca mais consegui desentocar um Tatu sequer. Nenhum outro cusco farejava como ele. Me dá uma raiva só de lembrar daquele dia. Por causa de um “ET” F.D.P que resolveu dar uma cagáda naquela noite, nunca mais vi meu cão, e tampouco pude comer um tatuzinho frito na panela de ferro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário