sábado, 17 de maio de 2008

KM 100: ONDE A MORTE ENCONTRA VOCÊ


– Não foi fácil chegar até aqui. Convencer os que não se convenciam, e convencer a mim mesmo que há algo de estranho nesta estrada. Foram quarenta e nove mortes nos últimos sete anos, e apenas agora estamos fazendo algo para frear o ímpeto destas curvas assassinas. As palavras saiam da boca de Felisberto Cunha. De profissão pedreiro, mas por amor, bombeiro voluntário, grupo que ajudara a criar anos antes. Seu sofrimento falava da Rodovia 470 que cortava ao meio a pequena cidade de Vale Grande.
O lugar era bucólico, com personagens muito próprios, onde a valentia e a perseverança de Felisberto sobressaiam. Primeiro teve de vencer a morte de sua esposa e suas duas filhas. A noite ainda ouvia os gritos de Rita, a mais jovem agonizando entre ferragens. Nunca mais dormiu uma noite de sono completo, e por isso seus olhos eram inchados e vermelhos. Voltavam da casa de parentes quando o carro guiado por ele deslizou no asfalto molhado, e sem condição de frear chocou-se violentamente contra o barranco. Apenas ele sobreviveu, e mesmo assim teve de superar dois meses de coma profundo. Muitas vezes praguejou os céus por apenas ele continuar vivo. A dor pela ausência de sua família o atormentava, e por mais de ano seu único consolo era o copo de cachaça.
Felisberto não trabalhava. Sua casa se habitou de ares fúnebres, e poucos tinha coragem de chegar a ela. Apenas o carteiro, que não passava da cerca com a caixa de correspondência, e o Padre iam ao seu encontro. O padre, inclusive, mostrava-se tão perseverante quanto Felisberto, pois várias foram as vezes que saiu corrido pelo amargurado homem. “Que Deus é este, que tira a vida de crianças, de esposas dedicadas? Que Deus é este?” dizia ele afrontando o pároco. Mas algum tempo depois ele recuou, e voltou a ser o homem cordial, e foi aí que começou a criar o grupo de Bombeiros Voluntários. O padre fizera um belo trabalho.
Então sempre quando algo ocorria de errado no lugarejo com pouco mais de dez mil pessoas, e nenhum prédio com mais de três andares, lá estava Felisberto sobre o carro Mercedes ganhou de uma cidade da Europa. E sempre havia trabalho, ora fogo, ora um simples animal em perigo, mas era soar a sirene em seu turno que Felisberto corria para atender com seus companheiros. Porém a alegria da maioria das vezes era abruptamente ceifada pelas tristezas que lhe chegavam. Todas vindas do quilômetro cem das 470, pois os acidentes continuavam a existir, e a levar vida em sua reta de trezentos metros, e em suas cinco curvas existentes nos setecentos metros restantes. Naquele lugar ninguém sobrevivia. Aliás, o único que restara para contar história tinha sido o próprio Felisberto. Fora ele, apenas corpos jaziam de ferros, borracha e vidro.



A fama de estrada da morte correu distâncias, e muita gente resolveu fazer turismo ao palco do horror que afligia os moradores e os viajantes. O trecho do quilômetro cem passou a ser um dos lugares mais visitados da cidade, embora seu visual não fosse, digamos assim, algo bonito para ser visto. Para quem vem do sul, a primeira coisa a ser vista é a placa vistosa, com a escrita estridente: KM 100. Esta substituiu a placa menor que se escondia sob os arbustos. A intenção na verdade era demarcar o local aos visitantes e curiosos, se bem que isto sequer era necessário, pois os estilhaços de pára-brisas, ferros contorcidos, e até rodas amassadas às margens deixavam claro que o lugar se iniciava ali. Não há casas em nenhuma parte do trecho. A reta é a primeira a se insinuar abrindo caminho para a morte, e logo apo com o “s” se inicia o trecho sinuoso. Do lado direito uma valeta leva a um barranco, e mais adiante o campo dá lugar a frondosos pinheiros á beira da estrada. No lado esquerdo, mais barrancos, e um declive acentuado levando a um buraco, onde há água num pequeno córrego ao se iniciar as curvas. O asfalto negro como as sombras por vezes é imaculado por buracos, e ondulações. Muitos protestaram por causa das condições da estrada, mas nenhuma autoridade buscou resolve-los. No entanto, talvez isto também não fosse suficiente, pelo menos é o que começara imaginar Felisberto.
A rodovia, e “o trecho da morte” começaram a se transformar numa obsessão do bombeiro voluntário, que via nas mortes muito mais que acidentes de trânsito. E aí começou sua peregrinação por convencer as demais instâncias da cidade que o Km 100 conduzia as mortes de forma planejada e metódica. No início ninguém deu ouvidos à suas teorias, nem mesmo o padre, que tentava achacar a obsessão de sua ovelha mais arredia. Mas Felisberto se debruçou sobre jornais, e outros documentos, que o auxiliaram a formatar um documento cheio de detalhes que era capaz de assustar aos que o viam. Assim ele começou a conquistar o apoio da prefeitura, dos demais bombeiros, e até da polícia local. O grande objetivo dele era salvar novas vidas, pois sabia que a estrada ira tragar mais almas, e sabia também o lugar, e a provável hora para acontecer.
– Demorei seis meses para elaborar este estudo, o qual hoje conta com a confiança de muitos aqui, presentes. Aos que ainda não tem o conhecimento, lhes peço discrição, pois o que será falado pode fugir da alçada da compreensão humana, porém mostram os números, que talvez haja mais que simples coincidências nas vidas que são levadas pela estrada maldita. Felisberto discursava para uma platéia com umas cinqüenta pessoas. Todas elas estariam envolvidas no planejamento de trabalho para aquela noite.
– Sei que muitos de vocês acreditam que não seja necessária nossa presença. Ou que eu tenha ficado louco, e que muitos também enlouqueceram por concordarem em colocarmos toda a estrutura da cidade num lugar onde não aconteceu nada. Mas tenham certeza, isto acontecerá, pois sempre aconteceu, e nós apenas tivemos tempo para resgatar corpos, jamais vidas. Nos últimos sete anos, dezenas de almas se perderam nesta estrada, quase cem. É nós não podemos fazer nada. Famílias se desfizeram por inteiro, jovens, velhos, homens, mulheres... Mas hoje podemos fazer algo para tentar evitar, e não quero que pensem que sou algum vidente ou coisa do gênero. São os números que afirmam isto, são eles que dizem que a morte chega a cada sete semanas, e primeiramente na primeira sexta-feira de noite sem lua, quando as sombras cobrem a terra, e a estrada naquele trecho. Caso alguém ainda duvide, todo o estudo está aqui, e é por ele que nos basearemos e passaremos a noite, e caso aquelas malditas curvas teimem em querer levar alguém, estaremos lá para salvar estas vidas. Todo o discurso de Felisberto foi baseado nos números e na certeza que a estrada tentaria levar mais alguém naquela noite.
Há sete semanas Severo Malheiros capo desgovernara sua camionete levando-a ao fundo do lago, morrendo afogado. Todas as vidas haviam sido tragadas entre vinte e uma e as vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos. Jamais depois da meia-noite. Jamais. Então bombeiros, uma ambulância, e policias partiram para o trecho maldito da estrada. Estava muito escuro, e mesmo que houvesse lua não seria vista, já que nuvens negras traziam trevas, e uma chuva aguda e fria, obrigando a todos usar capas e guarda-chuvas. Apenas os faróis dos carros da caravana cortavam os pingos d’água que caiam, enquanto olhares nervosos buscavam qualquer indício de perigo.
Ao chegarem, todos se puseram nos pontos pré-determinados, sempre buscando cobrir a maior área possível do trecho. Sirenes ligadas, cones redutores de velocidade, entre outros apetrechos foram usados para chamar a atenção dos motoristas que por ventura fossem trafegar na estrada. O carro com Felisberto ficou estacionado num plano pequeno, no início da curva. Com a chuva foram apenas três bombeiros, Felisberto e outros dois.
– Você acredita mesmo nisso? Perguntou Raul.
– Se não acreditasse, não estaria aqui. Respondeu agressivo.
– Não duvido de suas teorias, meu amigo, mas é que especialmente hoje, não acredito que alguém invente de pegar a estrada.
– É, mas há três anos chovia muito mais, e um senhor idoso bateu o carro quando ia a capital visitar seu filho enfermo. E foi também num maldito dia de chuva que esta estrada levou minha família.
– Ah! Lembro-me. Foi um dos primeiros acidentes, não foi? Sim, exatamente foi logo depois da inauguração da estrada nova ligando até Vale Novo. Mas isto faz quantos anos?
– Exatamente sete anos. Sete malditos anos que esta estrada carrega pessoas, e se cobre com o sangue e com a morte.
– Credo! Você até me assusta. Vou tirar uma água do joelho e volto já. Disse Raul.
– Também vou. Disse Ernesto. Provavelmente falariam das loucuras do colega, no lado de fora.

Felisberto ficou absorto em seus devaneios e lembranças cruéis. Enquanto os amigos se afastavam, até uma árvore para urinar ele ligou o velho radio que doara ao caminhão do corpo de bombeiros. O som melancólico de “stairway” do Led Zeppelin soava chiado, mas ele não trocou de estação, perdendo seu olhar em direção ao início da reta. A imagem de Ana sua amada esposa formava-se no horizonte. Viu seu sorriso doce de sempre. As meninas cirandavam a sua volta esvoaçando os vestidos de panos leves. Pareciam felizes, enquanto lágrimas vertiam de olhos clementes. Então ao longe, mesmo com os pingos mais grossos estalando na lata do caminhão, ele percebeu que uma luz vinha pela estrada, cada vez mais forte. Tinha um ronco forte, que rompia a noite, e em velocidade avançava pela reta. Sem acreditar no que via, Felisberto levou as mãos aos olhos, limpando-os para ver se não era miragem o que via. Não era. O caminhão seguia em velocidade em sua direção, e o mais incrível era conduzido por quatro enormes cavalos, dois de cada lado. Sobre ele nada mais que sombras cobertas por um manto negro, cavalgavam como se conduzissem o caminhão par o choque inevitável. Uma grande explosão se ouviu, e o caminhou profanou o carro de bombeiros e a carne Felisberto. Não vivia mais quando percebeu ser agarrado por um daqueles seres estranhos. Seu espírito foi tragado pelas condutoras da morte lavando-o a algum lugar desconhecido. Os cavalos subiam no ar com houvesse ali escadas, carregando pelos pulsos a alma de Felisberto, o mesmo que fora até o lugar para tentar salvar vidas. Desnorteado com a passagem ele ainda teve condições de ouvir a voz distorcida de um deles dizendo “até que enfim o encontramos!”
Depois daquela noite nenhum outro acidente aconteceu naquele trecho, e muitas autoridades ainda se indagavam quando ao corpo do outro motorista, que jamais fora encontrado entre as ferragens. Apenas Raul, ouvira os tropéis dos cavalos, e avistou as sombras que carregaram Felisberto. Mas ninguém lhe daria credibilidade, não dentro daquele hospício.

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