segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O proprietário

A mansão Salles está em festa. Seus corredores amplos, seus jardins, estão abarrotados de visitas. Os fogos estouram, e garçons que mais se parecem pingüins perdidos no calor tropical andam de um lado para o outro equilibrando suas bandejas que levam o bem mais precioso da noite: o champanhe. Aliás, garrafas e mais garrafas de Moet & Chandon. Bernardo estava disposto a não poupar naquela noite...

A iluminação, ainda com motivos natalinos deixava o ambiente brilhante e moderno. A luz prateada da luz só compunha o cenário, como um acessório de luxo. O jardim, com seu gramado bem aparado, suas floreiras coloridas, a piscina no centro com sua água azul como o céu, pintavam a fotografia onde mesas decoradas com finas toalhas brancas recepcionavam os convidados que se sentavam em grupos, e falavam de suas afinidades.

Mais de quatro dezenas de casais foram convidados seletamente. Apenas os mais íntimos a família de Bernardo Salles, empresário bem sucedido do ramo de mineração. Seu rosto resplandecia o renascimento aos quarenta, seus cabelos negros de cabelo com corte reto, e seus olhos cintilantes numa tonalidade tão indecisa quanto escritores ao escolher uma história, não se definiam, nem entre o verde, nem azul. Seu sorriso sim era estridente, mais estridente que um grito, que um desabafo.

Até que seu último convidado chegasse, Bernardo não abandonou o hall de entrada da mansão. Os carros, normalmente os modelos mais sofisticados, conduzidos por motoristas trajados á caráter desembarcavam seus proprietários, que subiam a pequena escadaria em mármore italiano, cumprimentados pessoalmente por Bernardo, e por Letícia. E por mais que Letícia seja coadjuvante no relato que lhes falo, não poderei negligenciar sua beleza encantadora, com seus longos e escorridos cabelos louros, seu sorriso branco qual marfim, e seu corpo escultural, adornado por um vestido branco, que naquela noite, não passava de um simples detalhe.

Quando todos enfim estavam acomodados, o anfitrião bebericou uma taça de champanhe, e discretamente retirou-se ao seu quarto. Trocaria de roupa antes que a contagem regressiva lhe trouxesse o novo ano. Antes, porém comemoraria a partida do ano que agonizava lentamente nos ponteiros de um velho relógio a cordas, num carrilhão antigo. Artefato de colecionador. E aquele ano, que em poucos minutos veria a corda da forca tirar-lhe a vida para então renascer com outro numeral, fora especialmente especial para Bernardo. Não digo isto, pela estonteante experiência sexual que Letícia lhe proporcionara com outra amiga. Tampouco pelo contrato com compradores americanos que lhe rendeu alguns milhões de dólares, ou pelo sucesso das ações de sua empresa lançada na bolsa de valores. Tudo isto era pequeno, comparado ao presente que aquele ano lhe proporcionara. Algo que não se distingue valor, mas que é mais raro que o mais bruto dos diamantes. Algo, que sem ele todo o resto é supérfluo, pois simplesmente não existe. A vida. Foi este bem sem condições de mensurar valor que aquele ano, quase acabado lhe fizera o favor de lembrar o quão importante é. Seu renascimento não poderia passar despercebido. Por isso aquela festa que inundava de alegria sua casa. Ele era grato, e antes tão avesso a atividades sociais, naquele dia queria compartilhar com todos seus convidados a celebração do dia-a-dia.

Desnudou-se do “smoke” de gala com o qual recepcionou suas visitas e tratou de vestir algo mais informal. Jeans e camiseta. Brancos. Estava pronto para voltar para o champanhe, para Letícia, e para seus amigos. Foi interrompido por um som seco, como o pisar de pés afoitos no assoalho. – Que está aí? Perguntou. Ninguém respondeu. Teve a nítida sensação que alguém passara pelo corredor. Foi até a porta, mas nas viu. “Foi só impressão.” Pensou.

Viu que a janela estava aberta. Por ela um vento gélido inundava o quarto. Foi fechá-la, para depois descer de volta ao jardim. Estava travada. Um tufão repentino jogou-o sobre a cama. – Meu Deus, como Estou Fraco! Levantou-se. Foi quando sentiu uma presença ausente. Não havia calor no quarto, mas ele podia sentir que não estava sozinho. Apenas as sombras deslizavam pelas paredes, disformes... Apenas sobras, e uma sensação que alguém o fazia companhia, no entanto ele não podia Vê-lo.

De certa forma Bernardo estava assustado. Temia padecer de alguma brincadeira de algum amigo fanfarrão. Antes fosse. A presença se fazia a cada segundo mais presente. Os pêlos do corpo de Bernardo estavam eriçados, e ele com passos apressado tentou fugir de seu próprio quarto. Mas foi impedido pela porta, que se trancou sozinha, numa batida violenta contra o marco. Ele tentou abri-la, mas a fechadura emperrou.

A sensação que alguém o acompanhava era mais nítida. Podia sentir o perfume amadeirado, e forte. Perfume de homem. Perfume barato, destes vendidos por consultoras de porta em porta. Sussurros lhe importunavam a mente... “Bernardo... Devolva-me... é meu... Bernardo... é meu... devolva-me...” As palavras que ates eram sussurros logo se tornaram uma voz clara e autoritária. Depois gritos. Sempre repetindo as mesmas palavras.

Sem poder crer em que seus próprios olhos produziam como imagem, Bernardo tropeçou, caindo de costas no chão. Bem na sua frente, fragmentos de luz permeavam o ambiente sem energia, e uma figura masculina se materializava bem na sua frente. Bernardo nunca acreditou em assombrações, mas na virada de ano, estava frente a uma. Era um homem pálido, de olhos fundos, de face quadrada, e que expunha em seu peito um enorme corte, deixando-lhe um grande vazio. – Devolva-me! Repetia mecanicamente o visitante inesperado.

Quando a contagem regressiva zerou, e as pessoas abraçavam-se sem notar a ausência do anfitrião, desejando-se mutuamente feliz ano novo, os fogos estouraram por toda cidade. Provavelmente isto impediu que os tenebrosos gritos de Bernardo não fossem ouvidos. No quarto, seu visitante queria algo que o anfitrião demorou a deduzir do que se tratava.

O fantasma curvou-se sobre o corpo de Bernardo e com mãos pútridas, mas com afiadas garras rasgaram o peito de Bernardo. – Isto me pertence! Disse a materialização fantasmagórica, arrancando das entranhas do morto um coração ainda pulsante. Um coração que não lhe pertencia. Quando a última bateria de foguetes estouros, Bernardo estava morto, e Jacson, finalmente partia para seu descanso eterno, levando algo que lhe fora roubado após a morte. Em suas mãos o coração pulsava menos, e talvez até estivesse morto, quando enterrou junto a sua lápide no cemitério São João Batista. Sua matéria estava recomposta num só corpo, e sua alma finalmente livre para viajar.

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