quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Numa noite de Sexta-feira Santa

Talvez vocês não conheçam o Passo Grande. Na verdade espero que não conheçam, aliás, lhes aconselho a não conhecer. Quem sabe se eu contar como ele é e o que acontece em suas águas corredeiras, vocês não teimem em ir até lá. Não é fácil chegar até ele. Fica obscuro entre bosques nativos no interior de Encruzilhada do Sul. O caminho mais fácil é que segue por Pantano Grande, entrar à esquerda no Vilarejo dos Gonçalves...

A paisagem do caminho é uma mistura de sentimentos. Assim como o medo e a adrenalina pela aventura se misturam, a aridez de campos secos mistura-se a pequenos bosques e vegetação de arbustos, graças a campos abandonados. Pouca gente vive por aquelas bandas. Há mais pinheiros pelo caminho, que boas almas a viver da agropecuária. E quando encontramos algum ser vivo, seus olhos são cabisbaixos e tristes. Na face carregam os sinais dos tempos. Não há gente jovem por lá. Foram todos embora.

Para chegar ao nosso destino, ainda passamos por um vilarejo e comemos poeira na estrada mal conservada. O capim e os galhos avançam pelo caminho dos que tem coragem de trafegar em lugares tão abandonados. Sabemos quando chegamos, quando entre aroeiras, vassouras brancas e vermelhas, uma massa de concreto corta o ar. Aí basta entrar num acesso escondido pelo capim à esquerda, e descermos lentamente até as margens do arroio.

A areia parece até ser de praia. Mas não há ondas. A água é dum tom verde-esmeralda e o leito do pequeno riacho tem corredeiras arredias e pedras espalhadas por todos os cantos. As margens são rodeadas por vegetação nativa. Corticeiras vivem por toda sua extensão. Há uns doze metros de altura fica a ponte de concreto, ligando dois pontos no meio do nada. Apenas ela é mais imponente que as árvores. Era neste lugar que por causa da minha indefinição passei uma noite alucinante de sexta-feira santa.

Bem, eu sou um desses sujeitos que faz tudo, e está presente em tudo. Não sei se me compreendem, mas há em meu íntimo um botão instalado que me impede de dizer não. É como se esta palavra não existisse em meu vocabulário. Acreditem, passei alguns apertos por causa disso. – Vamos pescar hoje? – Mas hoje é... – capaz isto é besteira dos mais velhos. – Mas... – Está bem vamos! E foi assim que entrei numa fria

Sexta-feira santa não punha mais medo nas pessoas. Principalmente nos jovens. Tem até os que fazem festa, vão a bailes. Cruz credo. Isto não ocorria nos tempos de meu pai. Talvez pescar não fosse maior pecado que pescar, e assim pela incapacidade de dizer não, e pela inocência de um jovem, parti naquele fusca. Éramos cinco. Mal tinha espaço para os apetrechos necessários para acamparmos. Na partida minha mãe, ainda tentou demover-me da empreitada. Mas era tarde. Não podia dizer não entre os outros guris.

Distraído por meus próprios medos, quando dei por mim estava cercado por aquela paisagem deserta. As árvores dançavam com o vento leve que se precipitava. Não gosto de mato. Mas estava no meio de um. Olhava para a ponte. Para ás árvores. Tinha sempre a impressão que algo desagradável surgiria da mata. Seus sons, suas sombras tudo me irritava. Mas me mantinha em silêncio. Já havia sido rotulado como medroso da turma, e queria desfazer aquela impressão.

Juntamos lenha para preparar uma fogueira. Com a tarrafa pegamos as iscas. Pobres lambaris. Até que davam uma boa fritada, mas para nós serviam apenas para habitarem nossos anzóis de aço. Largamos as linhas na água. Botamos as redes. A bóias-loucas. Estava tudo preparado, e quando a noite caía sobre nós, o fogo estava alto e o arroz e a lingüiça ferviam na panela de ferro. Bebíamos e contávamos piadas aguardando o jantar.

Dentre os cinco quatro já estavam embriagados antes das dez. Eu, o que menos bebia ainda conseguia discernir melhor. Tentei alertar que o vento aumentava, e que a lua cheia que por um momento iluminara nossas almas fora encoberta por nuvens negras e pesadas. Ao longe trovões podiam ser ouvidos, e não demorou para que uma chuva torrencial caísse sobre nós.

Neste momento ainda estava calmo. Exilados em nossas barracas de lona preta, eu era o único ainda acordado. Relaxava aos sons dos pingos estalando no plástico. Não há som mais calmante que esse. Um atrás do outro, como se regessem uma sinfonia. Fechava os olhos e fabricava imagens alegres. Então a noite começou a mudar de rumos.

Um ronco de motor se aproximava. “Quem Diabos, anda numa noite dessas por este lugar?” Indaguei mentalmente. Tentei acordar meus companheiros. – É só alguém indo pra casa. Disse um deles, e voltou a dormir. O ronco estava mais próximo. Era um ronco agudo. Forte. Andava lento. De repente, quando o ouvi próximo a ponte, o motor silenciou. Arrastei-me pela barraca, e pela fresta pude ver o vulto sobre a ponte.

Estava escuro e a chuva embaçava a minha visão. Mas jamais esqueci a silueta forte do homem sobre a moto, e o farol que mirava sobre nós e ofuscava meus olhos. Senti medo. Muito medo. Sabe quando uma presença te causa terror. Assim ocorria comigo. O motoqueiro nada fez, mas apenas sua presença me afligia. Seu repouso sobre a ponte nos mirando sua paciência e sua omissão com os fatos que sucederam sua chegada me atormentam.

Os pesadelos daquela noite me acompanham a cada noite, que relembro o fedor pútrido que invadiu minhas narinas. Era como se queimassem mil chifres de gado na beira daquele riacho. Ainda ofuscado pela lanterna da motocicleta, apenas ouvia o quebrar das águas contra as pedras. Elas serpenteavam as curvas de seu leito mais veloz que o habitual. Era uma enxurrada. Um manto de morte feito por água e peixes carnívoros que desciam rio abaixo. Vi alguns desses animais se regozijando com as carnes de meus amigos.

Quando as águas me sugaram para seu interior vi meus olhos serem cegados pelas águas escuras. Girava como as hélices de um navio num verdadeiro redemoinho. Era como se estivesse dentro de uma máquina de lavar roupas. Troncos e galhos tiravam raspão, arranhando meu corpo e distribuindo meu sangue. Sangue este que alertava o estranho cardume. Não tinha relatos de peixes carnívoros na região, mas naquela noite eu os pude ver. Eram enormes. Anormais. Seus olhos luminosos cor de fogo transformavam a solidão do mundo submerso do riacho numa grande metrópole com suas lâmpadas acesas.

Quando uma boca com dentes mais afiados que navalha penetrou minhas carnes, gritei medonhamente. A água invadiu minha boca e meus pulmões, silenciando a minha expressão de dor. Não podia mais gritar, e as mordidas aconteciam sucessivamente. Mentalmente orei um Pai Nosso, pois apenas a providência divina poderia salvar-me. Pedi perdão por meus pecados, e jurei nunca mais desrespeitar a sexta-feira santa. Minha mãe sempre dizia que neste dia “o bicho ruim” andava solto. Lembrei de suas palavras, e adormeci sem mais nenhuma consciência, e com vela da vida deixando de queimar seu pavio em minha alma.

Quando acordei já estava nesta cadeira de rodas. Sem minhas pernas. Sem um dos meus braços. Meu rosto está desfigurado, um dos olhos não existe mais. Apenas as lembranças daquela noite continuam perfeitas.

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